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Fumo eletrônico quer se firmar como 'mal menor'; especialistas divergem

Eduardo Knapp/Folhapress
Dispositivo eletrônico para fumar Heets
Dispositivo eletrônico para fumar Heets

Alardeados como alternativa menos danosa à saúde aos cigarros convencionais, os dispositivos eletrônicos para fumar (ou DEFs, cigarros eletrônicos e piteiras que aquecem, mas não queimam o tabaco) dividem opiniões.

A ideia de que os produtos seriam menos nocivos se baseia na ausência da combustão, que libera substâncias ligadas a doenças cardiovasculares e câncer. Sem fumaça, a exposição a esses elementos pode ser 95% menor.

Os resultados levantaram um debate sobre a possibilidade de os "novos cigarros" serem usados em políticas de redução de danos -conjunto de práticas cujo objetivo é diminuir o risco para quem não quer ou não pode parar de usar substância viciante.

Nos EUA, os dispositivos eletrônicos estão enquadrados, desde 2016, na mesma regulação de outros produtos de tabaco. A venda a menores de idade é proibida, e as embalagens devem ter alertas sobre possíveis danos à saúde. Propagandear os supostos benefícios em relação ao cigarro comum é proibido.

No Reino Unido, o governo afirmou em relatório que os dispositivos têm ajudado a reduzir o número de fumantes no país. "Evidências mostram que o cigarro eletrônico gera uma fração do dano do tradicional", diz Kevin Fenton, um dos diretores da PHE, agência britânica de saúde.

No Brasil, a importação e a venda dos DEFs estão vetados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desde 2009. Em julho, a Associação Médica Brasileira pediu à agência que a proibição fosse mantida, com o argumento de que os estudos não são conclusivos.

A liberação dos dispositivos será possível se sua finalidade de redução de danos for provada. Nenhum fabricante apresentou provas à agência. "Talvez porque não consigam comprovar", diz Tânia Cavalcante, secretária-executiva da Conicq, comissão interministerial para políticas de controle do tabaco.

A Philip Morris e a Souza Cruz, líderes da indústria no país, dizem não haver critérios claros para a aprovação.

Um relatório da Organização Mundial da Saúde, de 2016, afirma que seria uma grande conquista se a maioria dos fumantes substituísse o cigarro por forma mais segura de consumir nicotina -desde que não houvesse o uso entre não-fumantes. O documento afirma que as evidências científicas disponíveis são insuficientes para avaliar a eficácia dos dispositivos.

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RESSALVAS

Entre os especialistas em saúde, as ressalvas se baseiam em dois pontos. O primeiro é o desconhecimento dos efeitos a longo prazo. "Precisamos de mais décadas de estudo", diz o oncologista Bernardo Garicochea, do Hospital Sírio-Libanês.

Para Alice Chasin, toxicologista da Faculdade Oswaldo Cruz, os dispositivos já podem funcionar como "redução de danos". "O risco cai se a pessoa usar algo que diminua a exposição aos compostos da fumaça." Ela alerta, porém, que o produto "continua a fazer mal."

"De um lado, temos certeza sobre o dano do cigarro. Do outro, um pouco menos de certeza sobre o dano menor dos DEFs", disse Alex Wodak, presidente da Australian Drug Law Reform Foundation, no Fórum Global sobre Nicotina, em julho, na Polônia.

Muitos dos palestrantes (alguns pagos por fabricantes de cigarro) afirmam que a cautela impede que fumantes recorram a uma alternativa que pode ser mais segura.

O segundo grande temor dos especialistas é o possível impacto negativo dos novos dispositivos na bem-sucedida política antitabagista.

Estudo publicado na revista científica "The Lancet" mostra que, de 1990 a 2015, a porcentagem mundial de fumantes caiu 28% entre homens e 34% entre mulheres. Nas capitais brasileiras, segundo o Ministério da Saúde, recuou de 35% da população em 1989 para 10,2% em 2016.

Propagandear um cigarro potencialmente menos nocivo poderia colocar esse avanço em risco, sobretudo se o produto for atraente para jovens. "O problema é que o cigarro eletrônico entrou no mercado como algo saudável, sem evidência para isso. Há sabores doces para atrair adolescentes", diz Cavalcante. Segundo ela, nos países onde o aparelho foi aprovado, houve crescimento "assustador" do uso entre adolescentes.

Segundo a FDA, agência reguladora de saúde americana, 2 milhões de estudantes entre 12 e 18 anos usavam o dispositivo em 2016. Essa já é a forma mais comum de experimentar tabaco entre jovens dos EUA.

Para os especialistas, caso a redução de danos seja comprovada, só se beneficiará com a troca quem já tentou diversas técnicas para parar de fumar e não conseguiu.

Além de a concentração de nicotina ser maior em alguns dispositivos, eles podem levar a um consumo mais intenso por não exalarem mau cheiro nem causarem falta de fôlego. "Cigarro eletrônico não é tratamento, é só a troca de um vício por outro", diz a cardiologista Jaqueline Issa, diretora do programa de tratamento de tabagismo do Incor. "Apesar de não ser cancerígena, a nicotina aumenta a pressão arterial e está relacionada a danos cardiovasculares", afirma a médica.

Maiores mercados de DEF NO MUNDO -

PROCESSO BILIONÁRIO

A ideia de criar um cigarro que não faz mal é perseguida pela indústria desde que, em 1964, a US Surgeon General, entidade do Serviço de Saúde Pública dos EUA, publicou relatório sobre os riscos associados ao fumo apontando o hábito como principal causa do câncer de pulmão.

Em 1966, a agência federal americana de proteção ao consumidor permitiu que os fabricantes promovessem os cigarros "light" por conterem menores teores de alcatrão, nicotina e outras toxinas.

Usando o "Cambridge Filter Method", máquina que simula o ato de fumar, diversas pesquisas científicas indicavam que a concentração de nicotina e outras toxinas era significativamente menor.

Posteriormente, o National Cancer Institute provou que as alegações eram falsas. Os consumidores da versão "light" passaram a fumar mais e com tragadas mais intensas.

Desde então, embalagens com dizeres como "light, "soft", "suave" e "baixo teor" foram proibidas em diversos países, entre eles os EUA, Reino Unido e Brasil.

Estudos recentes indicam que os cigarros "light" fazem ainda mais mal à saúde e estão ligados à elevação da incidência de adenocarcinoma, um outro tipo de câncer, nos últimos 20 anos.

Em 1999, a procuradoria dos EUA processou Philip Morris, British American Tobacco, R.J Reynolds, Brown and Williamson, Lorillard, o Grupo Liggett, American Tobacco, Tobacco Institute e The Council For Tobacco Research por fraude.

Como a maioria das empresas possui sede no exterior e outras passaram por fusões, o processo acabou com apenas três réus: Philip Morris e sua holding, o grupo Altria, e a R.J. Reynolds.

Segundo documentos e declarações públicas anexadas ao processo, mesmo sabendo da maior propensão dos cigarros "light" a causar mutações celulares, elas continuaram a promovê-los como menos prejudiciais.

O então CEO da Philip Morris, James Morgan, afirmou que a empresa nunca anunciou os produtos como mais seguros e que a crença surgiu dos consumidores.

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Em 2006, a juíza Gladys Kessler condenou as empresas por fraude e estipulou multa de US$ 280 bilhões (R$ 868 bilhões). Após recurso das empresas, um colegiado de juízes confirmou a condenação, mas reverteu a decisão sobre a multa. Em 2010, a Suprema Corte rejeitou novos recursos e encerrou o caso.

Quatro sanções foram aplicadas: a proibição de usar termos como "light" e "suave"; obrigação de divulgar dados detalhados sobre gastos com marketing; a proibição de interferir ou administrar entidades de pesquisa ou de fazer afirmações falsas sobre produtos e o pagamento dos custos do processo, estimados em US$ 7 milhões (R$ 21 milhões).

Em nota, a Philip Morris afirmou que o tribunal de apelação não analisou os fatos e evidências do caso e que a decisão não tem conexão com o Brasil ou qualquer outra afiliada da Philip Morris International.

Segundo a empresa, os tribunais brasileiros analisaram alegações semelhantes contra as indústrias de tabaco que operam no Brasil e concluíram que as reivindicações não possuem mérito. (ll)

A jornalista viajou a convite da Philip Morris


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