Folha de S. Paulo


Estou feliz por viver além da data de expiração, diz escritora Susan Gubar

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A escritora americana Susan Gubar
A escritora americana Susan Gubar

Em 5 de novembro de 2008, às vésperas de completar 64 anos, Susan Gubar, professora emérita da Universidade de Indiana, EUA, soube que tinha um câncer no ovário.

Ao longo de sua vida acadêmica, Gubar, que foi indicada ao Prêmio Pulitzer, destacou-se por seu trabalho ligado a questões de gênero e à crítica literária feminista.

Ela descobriu a doença já em estágio avançado. Passou por cirurgias, ciclos de quimioterapia, procedimentos de radioterapia e outros tratamentos convencionais até que em 2012 iniciou um tratamento experimental no Simon Cancer Center da Universidade de Indiana.

O câncer a abateu, mas Gubar conseguiu voltar a escrever. Em 2012 publicou "Memoir of a Debulked Woman" (memória de uma mulher estripada), considerado um dos cem melhores livros do ano pelo "New York Times".

Gubar também mantém no jornal o blog "Living with Cancer" (vivendo com câncer). "Quando você tem câncer, não tem apenas câncer. Você pode ter uma geladeira quebrada, catarata, osteoporose e toneladas de outros assuntos."

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Folha "" A senhora inicia o seu livro "Memoir of a Debulked Woman" com a afirmação de que recebeu o diagnóstico de câncer como uma sentença de morte. Como superou esee choque?

Susan Gubar - Não superei o choque. O choque é que me superou, pois me submeti a uma sucessão de cirurgias e tratamentos que me debilitaram por vários anos.

O que a motivou a escrever sobre sua experiência com a doença?

Tomar notas durante o tratamento foi uma questão pragmática. Eu precisava lembrar e entender o que estava acontecendo comigo e não confiava na minha memória por causa dos efeitos das drogas que estava tomando. Escrever se tornou uma tábua de salvação para mim quando decidi transformar meu diário em um livro de memórias. Nesse livro pude recontar e também refletir sobre minhas experiências.

Normalmente pessoas com câncer não podem confessar seus sentimentos mais profundos e ansiedades para a família ou amigos porque temos receio de apavorá-los. A escrita também se tornou uma forma de protestar contra os tratamentos médicos debilitantes aos quais as portadoras de câncer de ovário são submetidas.

A sra. acredita que escrever pode servir como terapia para o tratamento?

Escrever continua a ter um papel terapêutico para mim, mesmo que eu não esteja escrevendo sobre o câncer. Muitos autores consideram que escrever é uma droga surpreendente que pode nos absorver tão completamente que somos removidos, por uma forma estranha de concentração ou devaneio, dos aborrecimentos do dia a dia.

O que as pessoas próximas precisam saber sobre as reais necessidades dos doentes?

Os pacientes são diferentes: alguns precisam de discrição e outros precisam falar abertamente sobre o assunto. 'Como posso te ajudar?' é normalmente uma pergunta apreciada, embora coloque o ônus sobre o paciente. Oferecer-se para fazer alguma tarefa ""o jantar, limpar a casa, cuidar das crianças"" pode aliviar a carga de pacientes debilitados pelo tratamento.

A sra. acha que participar de um grupo de apoio a pessoas com câncer ajuda a enfrentar a doença?

Meu grupo de apoio tem sido uma experiência maravilhosa que me transmite informações sobre vários tratamentos, me dá forças quando o desânimo me abate e trabalha ativamente para melhorar o tratamento do câncer em nossa comunidade local. Há pouco tempo propusemos a criação de um registro em nosso hospital através do qual pacientes recém-diagnosticados podem entrar em contato com pessoas que já enfrentam o mesmo tipo de câncer há algum tempo. É muito difícil quando um membro do nosso grupo entra em recorrência e em fase terminal, mas até essa experiência tem sido enriquecedora pois nos deixa mais próximos.

Um dos seus textos no blog faz uma crítica à forma como médicos e paramédicos transmitem notícias relacionadas com o câncer aos doentes. Que cuidados esses profissionais deveriam adotar?

Existem muitos artigos científicos sobre como os médicos devem transmitir más notícias a pacientes com câncer. Um modelo é o que segue as seguintes regras: busca de ambiente apropriado; percepção dos sentimentos do paciente; interação; conhecimento; dar atenção às reações emocionais do paciente e a necessidade de fornecer um resumo de sua situação. Infelizmente, a maior parte dos meus amigos não recebeu este tipo de abordagem sensível de seus médicos.

A sra. diz que escrever é uma forma de dar voz aos pacientes para que seja possível entender quem eles se tornaram. Quem é Susan Gubar após o câncer?

A doença me modificou profundamente. Eu mudei não apenas por causa das neuropatias que afetam o meu pé ou pela ostomia [cirurgia que cria um orifício no corpo permitindo comunicação com o exterior] que requer vigilância constante ou ainda pela queda de cabelo que me faz usar uma peruca. O câncer aumentou minha sensação de que sou mortal. O tratamento experimental a que me submeti continua a funcionar, miraculosamente, mas a qualquer momento ele pode deixar de funcionar e o câncer retornará. Esse tipo de consciência me alerta para a preciosidade do tempo que me foi concedido.

Apesar do sucesso do seu tratamento, a sra. deixa claro em seus livros e no blog que passou por "terríveis provações" ao longo dos procedimentos aos quais foi submetida. Alguma vez pensou em desistir? Ou, a exemplo de Susan Sontag, citada em seu livro "Memoir of a Debulked Woman", considera que a ideia de extinção é inimaginável?

Valorizo o pensamento de Susan Sontag, mas, por considerar que a ideia de extinção era inimaginável, ela se submeteu a tratamentos prolongados e inúteis que aumentaram o seu sofrimento. Quando eu estiver diante de uma situação terminal, pretendo me submeter apenas a cuidados paliativos. Acho que a aceitação de minha morte tornará as coisas mais fáceis para minha família.

A sra. se destacou por trabalhos ligados ao feminismo na literatura e à discussão do papel da mulher em culturas machistas. Considera que a cultura machista afeta a realização de estudos mais avançados sobre o câncer de ovário?

No meu ponto de vista, o fato de ainda não existir cura para o câncer de ovário não pode ser atribuído a uma sociedade machista. O problema tem a ver com a falta de mecanismos de detecção da doença: o câncer de ovário é frequentemente diagnosticado quando se encontra em estado avançado e já não pode mais ser curado.

Todos os mecanismos de detecção do câncer já testados falharam em uma grande quantidade de mulheres. Podemos só esperar que nossa sociedade forneça os recursos necessários para que os pesquisadores encontrem melhores alternativas para descobrir o câncer de ovário nos seus estágios iniciais, quando pode ser curado.

A sra. acha que há diferença na forma como homens e mulheres lidam com o câncer?

A única vez em que visitei um grupo de apoio ao câncer para homens, como visitante convidada, fiquei impressionada com a dificuldade que os homens têm para se comunicar com os outros sobre as consequências físicas do tratamento.

Era um grupo de câncer de próstata e seus integrantes achavam estranho conversar sobre incontinência e disfunção erétil. Parece que as mulheres foram condicionadas a falar entre si de forma mais íntima sobre seu corpo e sobre as respostas emocionais aos problemas do corpo.

A sra. continua fazendo tratamento alternativo?

Estou aproveitando um novo projeto de livro que serve como umas férias aos meus textos sobre câncer. É um manuscrito centrado no amor tardio. Como se pode ver, apesar de estar passando por sofrimentos físicos, estou feliz em aceitar o presente que o tratamento experimental me proporcionou: viver além da minha data de expiração.

Quando fui diagnosticada, recebi o prognóstico de que viveria de três a cinco anos. Sinto prazer na minha existência pós-prognóstico. Continuo a esperar que outras pessoas se beneficiem, como eu, dos milagres da ciência médica.


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