Folha de S. Paulo


Propaganda de cerveja e alimentos é 'obscena', diz ex-ministro da Saúde

Para dar conta dos desafios da saúde, o Brasil deve procurar a tecnologia de ponta, mas também apostar numa prevenção que comece na alimentação.

A discussão entre o equilíbrio da tecnologia no tratamento e no próprio acesso à saúde dominou o Fórum de Tecnologia e Acesso à Saúde, promovido pela Folha, na manhã desta segunda (31), no teatro Tucarena, em São Paulo.

O neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho abriu o evento, defendendo o uso da tecnologia no serviço público. "A tecnologia pode estar presente no serviço público com condições de competir com os serviços privados."

Diretor do Instituto Estadual do Cérebro, do Rio de Janeiro, Niemeyer Filho citou a criação de quatro hospitais e um centro de diagnóstico, que "mudaram o paradigma de eficiência no serviço público".

Na primeira mesa do dia, que debateu a ampliação do acesso à saúde e o uso de novas tecnologias, Jarbas Barbosa, diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), afirmou que o país precisa de um "ambiente regulatório que favoreça a inovação". "Tivemos aprovações que facilitam a realização de experimentos sem uso de animais, com foco no uso de banco de tecidos."

Também presente à mesa, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão mostrou preocupação com o índice de obesidade na sociedade brasileira, que, segundo ele, se aproxima dos EUA, referência negativa no tema.

Ainda sobre o tema, o ex-ministro disparou contra o Congresso. "É incapaz de regular a propaganda obscena de cerveja e alimentos infantis."

O ex-ministro também cobrou uma reforma fiscal e tributária para financias o SUS (Sistema Único de Saúde). Citando o sociólogo alemão Norbert Elias, autor de "O Processo Civilizador", Temporão afirmou que o SUS faz parte do processo civilizatório brasileiro.

Outro participante do debate, Marcos Boscolo, líder de healthcare da consultoria KPMG no Brasil, fez menção à crise econômica em sua fala. "Com o aumento do desemprego, mais pessoas estão ficando sem planos de saúde."

Na segunda mesa do dia, Lumena Furtado, da Secretaria de Atenção à Saúde, criticou a "cultura de excesso de medicalização" no país. "Acesso de qualidade à saúde nem sempre é mais medicamentos."

A redução dos gastos no futuro, segundo Lumena, também passa pela mesa dos brasileiros e pode estar em medidas relativamente simples, como a diminuição do sódio em alimentos processados.

De acordo com a especialista, uma parceria do Ministério da Saúde com as empresas produtoras de alimentos reduziu a presença do sal nos pratos brasileiros em 7.600 toneladas em 2 anos. A meta é chegar a 2022, retirando 22 mil toneladas. A ação, segundo ela, levará à diminuição do consumo de remédios para pressão em cerca de 1 milhão de pessoas.

Para Lumena, "é fundamental avançar no cuidado clínico além do uso de medicamentos". "Se eu penso em cuidar de 200 milhões de brasileiros, temos que entender a transição demográfica e a tecnologia que dê suporte, como o consultório de rua, que vão onde as pessoas estão."

Entrando no aspecto financeiro da situação da saúde no Brasil, a secretária afirmou não existe planejamento de médio a longo prazo sem financiamento sustentável. "US$ 525 por habitante é o gasto médio com saúde no Brasil, o ideal é que seja US$ 3.000."

O diretor-presidente da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), José Carlos de Souza Abrahão, seguiu na mesma linha. "O desperdício de recursos é alto ainda. Mesmo sendo o Brasil referenciado em imunização e transplantes, teríamos que investir US$ 3.000 por habitante, como é nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) [como Áustria, Japão, Reino Unido, Austrália, Chile]. Temos buscado o diálogo com o setor de saúde suplementar. O que o consumidor adquirir ele tem que receber."

Representante do setor de saúde suplementar, Marcio Coriolano, que é presidente da FenaSaúde, criticou a lei segundo a qual os planos de saúde são obrigados a atender todas as doenças descritas na CID (Classificação Internacional de Doenças). "É quase impossível."

Nessa situação, diz Coriolano, cresce o custo das operadoras, que acabam repassando para os clientes. "É o custo da medicina cada vez mais incompatível com a capacidade de pagamento da sociedade brasileira".

Abrahão rebateu afirmando que o alto custo é consequência da regulação da cadeia produtiva. "Só as operadoras são reguladas, o restante da cadeia, não." E acrescentou: "O setor vivia solto na década de 1960, eram mais de 2.000 operadoras na época, hoje são mil. Há 15 anos, a sobrevida do brasileiro era de 65 anos, hoje é de 75 anos. O perfil das doenças também mudou, de epidemiológicas para degenerativas, e os planos precisam acompanhar".

"Ajustes são naturais e nossa Constituição já definiu que o privado entra onde o sistema público não é capaz de atender a população. Essa relação é importante", completou a secretária de Atenção à Saúde.

Jorge Araujo/Folhapress
Marcio Coriolano, presidente da FenaSaúde, José Carlos de Souza Abrahão, diretor da ANS, e Lumena Furtado, secretária do Ministério da Saúde, no Fórum Tecnologia e Acesso à Saúde
Marcio Coriolano, presidente da FenaSaúde, José Carlos de Souza Abrahão, diretor da ANS, e Lumena Furtado, secretária do Ministério da Saúde, no Fórum Tecnologia e Acesso à Saúde

CPMF

Na terceira mesa do dia, o assunto debatido foi o papel do diagnóstico no tratamento e na prevenção de doenças.

Segundo Robinson Poffo, diretor de cirurgia minimamente invasiva do Hospital Albert Einstein, não há como tratar os pacientes a qualquer custo. "Dada a escassez de recursos, devemos pensar na sustentabilidade tecnológica." Segundo o médico, além da aquisição, há o custo da manutenção, por isso "a tendência é que poucos centros usem cirurgia robótica no Brasil, como acontece na Europa e nos EUA".

Armando Lopes, vice-presidente de Healthcare da Siemens, seguiu na mesma linha. "É muito claro que a tecnologia tem que se pagar, deve ser um investimento que possamos pagar." Já Álvaro Nagib Attalah, diretor da Cochrane-Brasil, afirmou que é possível economizar "em tudo", "menos em avaliação tecnológica de qualidade".

A quarta e última mesa do dia tratou das tendências da saúde no Brasil. De acordo com Paulo Chapchap, diretor do programa de transplante de fígado e superintendente de estratégia corporativa do Hospital Sírio-Libanês, faltam médicos em todas as áreas da saúde.

"É preciso aumentar em 50% o número de médico no Brasil para que o acesso aumente", afirmou Chapchap.

Além da falta de médicos, Claudio Lottenberg, presidente do hospital Albert Einstein, acredita que os profissionais sejam desvalorizados. "Somos mal remunerados. Recebemos pelo paciente que fica doente, não para cuidar da saúde da população. Deveria existir um incentivo para quem for mais eficiente."

O projetado de recriação da CPMF, que durou apenas três dias, também deu as caras no debate. "A sociedade renegou a recriação da CPMF, que dá um sinal sobre falta de preocupação com o investimento em saúde", disse Paulo Furquim, pesquisador do Insper.

"A sociedade não renegou o investimento. Só quis dizer 'não quero que tirem de mim'", rebateu Chapchap.


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