Folha de S. Paulo


Opinião: Programa Mais Médicos é paliativo midiático do governo

Após nove meses do seu lançamento, a cada dia o Mais Médicos confirma sua vocação eleitoreira, evidenciando fragilidades técnicas e jurídicas.

Como jogada de marketing feita para angariar votos e simpatias, ele sintetiza a forma simplista como os gestores buscam a solução para os problemas que afetam a população.

É como se o aumento sem critérios da oferta de profissionais fosse capaz de resolver o caos no qual está mergulhado o Sistema Único de Saúde (SUS).

Equivocadamente, o foco está na quantidade –no caso, com a presença de pessoas sem qualificação comprovada, como o caso dos 41 brasileiros vindos da Venezuela, que, de acordo com as autoridades do próprio país, não concluíram sua formação.

Na contramão, ficaram de lado as ações estruturantes para mudar a realidade dos moradores das áreas mais distantes ou mesmo das periferias dos grandes centros.

Isso é uma prova de escuta seletiva. Em maio de 2013, quando milhares de cidadãos foram às ruas protestar contra a qualidade dos serviços públicos, o governo federal não quis entender o recado.

De lá para cá, pouco ou nada se falou sobre a melhora do financiamento da saúde, a modernização da gestão e o maior controle no uso dos recursos.

Também ficaram em plano secundário as ações para a melhoria da infraestrutura e o estímulo para atuação de médicos brasileiros na rede pública do interior e das capitais, por meio da criação de uma carreira de Estado específica no SUS.

Sem debates aprofundados com diferentes categorias, com universidades ou com representantes da sociedade organizada, o Mais Médicos se consolida como exemplo antidemocrático do gerenciamento dos interesses e das necessidades da nação.

Ao contrário do que afirmam alguns setores, os médicos –por meio do Conselho Federal de Medicina e de outras entidades– tentaram contribuir.

Propostas e sugestões foram encaminhadas ao Ministério da Saúde e ao Planalto. A resposta veio na forma de silêncio.

Hoje, o Mais Médicos existe como realidade torta, questionada na Justiça por abusos contra direitos humanos e trabalhistas.

Apesar dos pesados investimentos em publicidade, ele se mostra incapaz de mudar a percepção negativa da população sobre os rumos da assistência.

Conforme mostram pesquisas recentes, mesmo após sua implementação, o brasileiro ainda enxerga na saúde seu principal ponto de insatisfação. Isso ocorre porque a população não viu acontecer o que de fato esperava.

As instalações continuam precárias, os novos equipamentos não chegaram e o acesso aos leitos e aos procedimentos de maior complexidade ainda é demorado.

Também percebeu que o governo não investe de maneira eficiente em saúde nem tem mecanismos de controle afinados para eliminar de vez os desvios.

Mas, diante desse cenário desfavorável, o que fazer com os pleitos legítimos da população? O momento exige cautela e responsabilidade, para fazer dos limões acumulados uma bebida para aplacar a sede dos brasileiros por justiça e dignidade.

Cabe ao governo dar passo decisivo e abandonar o paliativo midiático em favor do planejamento de longo prazo.

Somente assim o Brasil encontrará o caminho do seu desenvolvimento econômico e social, oferecendo aos cidadãos acesso à saúde de forma universal, com equidade e qualidade.

ROBERTO LUIZ D'AVILA, 61, cardiologista, é presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM)


Endereço da página: