Folha de S. Paulo


Bancas de jornal querem aproveitar nova lei para reconquistar público perdido

No início do século 20, elas se resumiam a pilhas improvisadas de caixas de madeira. Durante a ditadura, pegaram fogo (literalmente), incendiadas por vender material "subversivo" como "O Pasquim". No fim dos anos 1990, viraram pontos de encontro de jovens na madrugada --com paquera e cervejinha.

Hoje, as bancas de jornais tentam se reinventar para vencer a concorrência: em dez anos, padarias, lojas de conveniência e mercadinhos abocanharam 30% das vendas de periódicos e revistas.

A ideia é contra-atacar: uma lei municipal aprovada pelo prefeito Fernando Haddad na semana passada ampliou a lista de produtos e serviços que podem ser vendidos nas 3.500 bancas da capital.

Agora elas podem oferecer bebidas não alcoólicas e alimentos industrializados como sorvetes, salgadinhos e doces (mas só até 200 g).

O rebuliço não traz grandes novidades ao consumidor. Na prática, a lei regulariza um hábito que já era comum desde os anos 1990, à revelia das regras impostas pela prefeitura. Só neste ano já foram aplicadas 76 multas (de R$ 115 a R$ 575).

Segundo a legislação anterior (de 2000), o limite para alimentos industrializados era de 30 g, ou o equivalente a um pacote de balas. "Mas uma Halls pesa 37g", diz Paolo Pellegrini, 64, responsável pela Banca República, na esquina das avs. São Luis e Ipiranga (centro), onde até livro de arte de R$ 750 se encontra. "A prefeitura sempre fez vista grossa. Um dia, um fiscal apareceu, me multou e levou as balas. Depois sumiu de novo."

Não foi a primeira vez que o veterano da República precisou enfrentar a fiscalização. Na ditadura, para driblar a censura dos militares, ele escondia numa caixa de sapatos exemplares dos "catecismos", como ficaram conhecidas as revistinhas de quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro.

Por ali, ainda na década de 1970, o jornaleiro recebia vizinhos ilustres, como Gilberto Gil e Caetano Veloso (que já cantava: "O sol nas bancas de revista/ me enche de alegria e preguiça/ quem lê tanta notícia").

"Um dia o Gil veio comprar jornal de túnica branca. Os loucos da praça acharam que ele era São Pedro e saíram correndo atrás dele", lembra.

QUEBRANDO A BANCA

Editoria de Arte

Novo endurecimento na fiscalização aconteceu entre 2005 e 2012, segundo o Sindjorsp (Sindicato dos Vendedores de Jornais e Revistas de SP). Duas autuações por irregularidades (como a bala Halls) eram suficientes para caçar o TPU (Termo de Permissão de Uso), documento necessário para o ponto funcionar.

Em 2009, alegando que as bancas criavam "pontos cegos" para a polícia, onde criminosos poderia buscar refúgio, o então prefeito Gilberto Kassab anunciou a retirada de cerca de 50 delas do centro. Jornaleiros protestaram. Em vão: a maioria teve de sair.

Para o coronel José Vicente da Silva, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, "próximas a bancos, [as estruturas] servem de tapume para bandidos. A visibilidade fica comprometida".

Para o presidente do sindicato, José Mantovani, é o oposto. "Nos momentos de insegurança, a pessoa corre pra dentro para não ser assaltada. Fecharam 1.500 bancas com esse papo de que estimulavam a bandidagem."

Os pontos fechados dificilmente serão reabertos: com o TPU cassado, é preciso aguardar nova licitação para a distribuição de novas permissões --o que não acontece desde 1994.

Enquanto isso, quem quer abrir uma banca precisa encontrar alguém disposto a vender a sua. O preço de tabela equivale a três vezes o que o estabelecimento fatura no mês, em média. Com R$ 35 mil é possível comprar uma completinha no Jaraguá (zona norte). Já na avenida Paulista, uma banca paga à prefeitura R$ 40 mil por ano pelo imposto anual de funcionamento (não há nenhuma à venda no momento).

EM FAMÍLIA

Como o alvará é hereditário, há gerações de pais, filhos e netos no mesmo ponto. Jornaleira mais antiga da cidade, a italiana Caterina Abbatepietro, 80, constrói sua clientela em Santo Amaro (zona sul) desde 1961, quando sua banca se resumia a "caixas de cebola empilhadas".

Em 1901, o avô de seu falecido marido já circulava entre os casarões da Paulista. Debaixo do braço, carregava jornais como o "Fanfulla" (dedicado à comunidade de imigrantes italianos).

"Chegamos a ter 13 bancas", conta Caterina, com leve sotaque e um longo colar de pérolas. Com o tempo, só sobrou a de Santo Amaro. Lá, trabalha de domingo a domingo ao lado dos filhos e de um funcionário.

A conversa com a sãopaulo não foi sua primeira entrevista. "Em 1954, apareci vestida de noiva na capa da 'Vida de Doméstica', que eu amava." Com esse título (hoje politicamente incorreto), a publicação destinada às donas de casa, de tão disputada, desaparecia das bancas.

DESVIO DE VERBAS

Outro item que quase sumiu: talões de Zona Azul. Explica-se: o sindicato dos jornaleiros acumula dívida de R$ 500 mil com a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), que fornecia os tíquetes do estacionamento.

A atual diretoria do Sindjorsp afirma que dois ex-presidentes, Ricardo Lorenço do Carmo e Francisco Ranieri Netto, ocultaram documentos fiscais de suas gestões e desviaram verba que deveria ter ido para a CET. O rombo ultrapassaria R$ 1 milhão. Procurado, Carmo disse que "as acusações são infundadas". A polícia abriu inquérito e investiga o caso.

A CET diz que, apesar da dívida (cobrada judicialmente), a distribuição de talões para as bancas está normalizada. A venda está sendo feita direto nos pontos cadastrados, sem intermédio do sindicato, diz o órgão.

Na busca por outras fontes de renda, as bancas querem visibilidade.

Um projeto de lei em tramitação na câmara propõe transformar as bancas em pontos de informação turística, com selo oficial da prefeitura e distribuição de mapinhas e roteiros. Proposta pelo vereador José Américo (PT), presidente da Câmara e autor do projeto que alargou o rol de produtos vendidos, a ideia agrada o sindicato. "É coerente", diz Mantovani.

A prática de pedir informações para o jornaleiro (quem nunca?) é tão comum que há quem cobre pelo serviço. Em julho, matéria publicada pela Folha mostrou uma banca na av. Francisco Matarazzo que cobrava R$ 2 para dar informações sobre as ruas no entorno --valor que depois inflacionou para R$ 8. "Não trabalho de graça", justificou o amuado jornaleiro, conhecido como seu Palmeirense.

Mas a grande expectativa é em relação ao Vale-Cultura, projeto do governo federal que dará R$ 50 a quem recebe até cinco salários mínimos, para comprar bens culturais, inclusive jornais e revistas. Para o presidente do sindicato, "é muito mais fácil entrar numa banca do que num teatro".


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