Nãnãna chegou do Rio há quase 40 anos. Luis Carlos veio do interior há 36. Shirlei nasceu por lá. Lourival tem seu apartamento desde a inauguração.
Todos compartilham o número 235 da rua Paim, na Bela Vista (centro). Lá resiste o Residencial 14 Bis, prédio modernista dos anos 1950, conhecido como "treme-treme" (há duas explicações para o apelido: a estrutura balançava com o vento e, lá embaixo, algumas figuras marginais faziam "tremer" o local).
E tem mais Nãnãnas, Luíses, Shirleis e Lourivais por ali: são 1.686 pessoas nos 499 apartamentos do prédio, que fica na parte baixa da rua.
Junto aos vizinhos Demoiselle e Caravelle, o 14 Bis dá contorno ao conjunto de prédios Santos Dumont, construído em 1955 pelo arquiteto Aron Kogan (o mesmo de "treme-tremes" famosos como o São Vito e o Mercúrio, demolidos no centro).
Entre o 14 Bis e o Demoiselle há uma rua particular estreita e escura, onde se enfileiram, além de mercadinhos e restaurantes, oito botecos (cheios, dia e noite). E por ali não faltam lendas sobre o edifício.
Não é difícil puxar conversa com os frequentadores -e o papo sempre termina nas figuras ilustres que teriam aproveitado o anonimato da juventude por lá. Ted Boy Marino, Nelson Ned, Mussum e Ary Toledo, por exemplo.
"Foi em 1964", confirma Ary. "O lugar era conhecido como 'joga a chave, meu bem': o sujeito entrava bêbado na ruazinha e gritava pra mulher -'joga a chaaaave'. Dava para morrer soterrado com o que vinha lá de cima."
Neila Bernardes Gomes, viúva de Mussum, jura que ele nunca morou lá. "Deus me livre! Mas frequentava, porque os Originais do Samba e a minha cunhada moravam lá."
NÃ-NÃ-NA
Lenda viva é Nãnãna da Mangueira, 70, mãe do sambista Ivo Meirelles e orgulhosa moradora do 20º andar.
"Três 'nãs', meu filho, e no último abre: Nã-nã-na", soletra a sambista de cabelos vermelho-fogo, unhas douradas e camisola azul.
Ela pede que voltemos no dia seguinte para fotografá-la. "Preciso esticar meu 'Assolan'", brinca comparando seu cabelo à esponja de aço.
Quando retornamos, ela está maquiada e de túnica verde, organizando fotos suas com Liza Minnelli ("cantamos juntas 'Trevo de Quatro Folhas' no México) e James Brown (ela
encontrou o rei do soul na Bélgica).
A mais valiosa é com a rainha Silvia, da Suécia. "Estava cantando num bar chamado Old Friends, na Nove de Julho, quando ela entrou e surpreendeu todo mundo", conta, mostrando recorte de jornal antigo.
"Meu filho quer me tirar daqui, mas não saio da Paim de jeito nenhum", diz. "Aqui conheço todo mundo, tenho açougue, farmácia e taxistas maravilhosos que me buscam de graça na rodoviária quando estou dura."
Dureza é a vida de Luis Carlos da Cruz, síndico do 14 Bis."Dá trabalho, mas não me vejo fazendo outra coisa", diz o detentor do posto há 22 anos.
Ao lado da filha Shirlei, 31, Luis conta que decidiu revolucionar o prédio após denúncias enviadas ao Ministério Público. Começou trocando os botijões de todos os apartamentos por gás encanado. Instalou portas corta-fogo nos andares. Começou a multar quem ouve música alta (forrós como "Risca Faca" são os principais hits), quem deixa os filhos andarem de bicicleta nos corredores e quem solta animais no hall de elevadores.
"Antigamente jogavam até garrafa pela janela", diz. "No Ano-Novo era uma chuva, tinha que tomar cuidado".
Ele desfaz outra lenda antiga do 14 Bis -um botijão que teria sido lançado sobre uma viatura da PM. "Nem o zelador, que trabalhou por mais de 40 anos, confirma essa história."
Lourival Prado, 81, morador mais antigo do conjunto, está de acordo.
"Nunca aconteceu isso, não", assegura, enquanto ajeita a gola da camisa de linho. "E olha que antes tinha muito mais traficante, bagunça, confusão".
Ele chegou à Paim logo depois da inauguração do prédio. "Era um luxo só. Tinha muitas mulheres lindas, e elas não se prostituíam", lembra.
O veterano não estranha os novos empreendimentos da rua. "A cada década muda tudo. Já vi muita gente vindo e saindo, depois vindo de novo. Nada me surpreende."
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