Folha de S. Paulo


Clássico paulistano, bar Riviera será reinaugurado por Alex Atala e Facundo Guerra

Estrategicamente acomodados no balcão, perto de uma garrafa de Curaçao Blue, Zé e Juvenal observam o vaivém dos 40 funcionários do novo Riviera --entre seguranças, faxineiros e equipe de cozinha.

É dia de treinamento: a casa, que no passado atraía figuras como Chico Buarque e Angeli em farras que iam noite adentro, abrirá suas portas mais uma vez na próxima semana, após sete anos fechada.

O novo Riviera mais do que dobrou o tamanho (500m² e 7 m de pé direito) e volta sob o comando de Alex Atala, 45 (chef do D.O.M, recém-eleito segundo melhor restaurante da América Latina pela revista britânica "Restaurant"), e do empresário da noite Facundo Guerra, 39.

Ali do mezanino, Zé e Juvenal testemunharam quando Atala apertou os olhos e deu um passo com o pé direito ao entrar pela primeira vez no espaço reformado ("pra dar sorte").

Ou quando Facundo --que têm outras quatro casas noturnas na cidade, como Lions e Volt--emplacou, suando em bicas, um discurso de boas-vindas ao empregados.

"Quero que se lembrem que essa não é só mais uma casa minha ou do Alex. Não fizemos isso por dinheiro, e sim por paixão. Vocês vão fazer parte de um lugar que marcou a história da noite dessa cidade. Daqui, sairão outros Juvenais e outros Zés."

Zé e Juvenal foram lendários garçons do Riviera "old school". Mas não são eles que acompanham a nova empreitada, e sim dois peixinhos dourados que viraram mascote do Riviera 2.0, batizados em homenagem à dupla.

O aquário ficará numa estante que abriga objetos pessoais dos donos, como obras de Ariano Suassuna, Borges e Marx --o estabelecimento tem projeto arquitetônico assinado por Márcio Kogan.

Dos áureos anos 1960 à decadência na década de 1990, os garçons comandavam as bandejas enquanto observavam festas, brigas e até striptease. Os músicos Elis Regina e Toquinho e os cartunistas Laerte, Chico e Paulo Caruso eram alguns dos frequentadores mais ilustres.

A GRANDE FAMÍLIA

O Riviera foi criado por Ignacio Maniscalco em 1949, no térreo do edifício Anchieta, num cotovelo entre a av. Paulista e a rua da Consolação, em frente ao Cine Belas Artes.

Tomou o lugar de outro bar chamado Royal, com um nome que homenageava a Riviera Francesa. A vocação inicial era reunir senhoras da elite cafeeira paulistana. "Elas iam ao cabeleireiro, no andar de cima, e vinham tomar lanche da tarde", lembra Renato Maniscalco, filho de Ignacio.

O bar sempre foi um negócio familiar. Por lá cresceu Renato, hoje com "82 anos bem vividos". Ele cuidou do espaço até o fechamento, em 2006. Na época, não conseguiu honrar anos de aluguel atrasado. Hoje, aposentado, mora em Mongaguá (litoral paulista).

Se o bar nasceu voltado à elite, essa sofisticação logo se foi. Nos anos 1950, começou a atrair professores universitários, políticos e esportistas. "Maluf já passou por aqui para almoçar", conta Renato.

Ele lembra com clareza do 6 de março de 1958: a noite em que o jogador do Palmeiras Mazzola foi lamentar a derrota para o Santos de Pelé por 7 a 6, no Pacaembu. Ao entrar, ele se deparou com os adversários comemorando. "Tomou cuba libre até chorar", recorda o antigo dono.

Nas décadas de 1960 e 1970, o Riviera virou ponto de encontro da esquerda festiva.

Foi lá que, em 1966, Chico Buarque celebrou a vitória de "A Banda", no Festival da Record (na verdade, um empate com "Disparada", de Geraldo Vandré). Renato lembra que a festa foi tímida. "Ele sentou com dois amigos em um canto, e eu tive a honra de lhe pagar um uísque."

Chico Caruso, 63, cliente fiel ao lado do irmão gêmeo Paulo, diz que foi ali seu ingresso à boêmia --e também às broncas que levava da avó quando chegava em casa ao amanhecer, ainda embriagado.

"Além do álcool e das mulheres, descobrimos a imprensa independente. Fazíamos o fanzine 'Balão' e vendíamos por lá mesmo, a dois cruzeiros", afirma Chico.

Mesmo com tantos anos de histórias para contar, Renato não titubeia ao apontar a noite favorita: "Foi o dia do jogo entre Brasil e Uruguai na Copa de 1970. Tinha centenas de pessoas comemorando ali. Tive que chamar a polícia e fechar o portão. Uma farra."

Já Laerte, 62, diz que frequentava com parcimônia. "A comida não era das melhores. Às vezes comíamos no bar vizinho Ponto Quatro e voltávamos para beber."

"Ou então", continua Laerte, "jogava um vinagre na salada mesmo para matar as porcarias. Achei até barata na comida".

Na fase da libertação feminina, estudantes de arquitetura e filosofia chegavam sozinhas e pediam drinques no balcão. "Éramos militantes da era Leila Diniz. Falava-se sobre política, mas também de arte e namoro", diz a arquiteta Eliani Harscha, 64, que inspirou uma das Freak Sisters, trio desenhado por Chico Caruso.

"Lembro de uma garota que subiu no bar com um casaco de pele e começou um striptease. Tentei impedir, mas a moçada me vaiou, então eu deixei, né?", lembra o ex-proprietário Renato.

Entre uma bebedeira e outra, em tempos de AI-5, o ápice da ditadura, o arquiteto Cláudio Tozzi, 68, recorda dos cochichos que rondavam a casa quando algum cliente assíduo desaparecia de repente. "Se um não ia, era bom ficar ligado."

Rê Bordosa

Outros frequentadores das antigas apontavam Tozzi como galã do bar. "Não sei de nada. Pergunte às moças", ele se diverte.

O publicitário Washington Olivetto, 61, que nos anos 1970 era fã do tradicional sanduíche Royal (pão de forma enrolado em uma omelete), descido com cerveja, acha que a ditadura foi um elemento de união.

"Assunto, poesia de mimeógrafo e mulheres modernas não faltavam", diz ele, que parou de frequentar quando mudou de poder aquisitivo e foi circular por outras bandas.

A personagem Rê Bordosa, criada em 1984 por Angeli, nasceu no Riviera --inspirada não por uma, mas por várias garotas que pertenciam àquele universo.

"Entrei no banheiro masculino e lá estava uma mulher fazendo xixi de pé. Olhei e ela falou: 'Depois da quinta dose, faço coisas que até Deus duvida'", conta o criador de Rê.

Angeli bateu ponto lá até o fim dos anos 1980. Para ele, o bar foi importante por ter sido frequentado por "pessoas brilhantes".

Para o cartunista, uma turma que virou "ícone da cultura e da política brasileira, num momento de contestação e de muita criatividade".

E não só: "Até casei com uma ex-namorada do colégio que reencontrei por lá" (hoje, ex-mulher).

O novo Riviera terá noites com curadoria musical e clima de clube de jazz. "Fiz uma casa que gostaria de frequentar com meus amigos", diz Atala.

O cardápio, segundo o chef, "é de cozinha boêmia com um certo ar cafoninha de flor de tomate. Quero resgatar ícones da casa como o sanduíche Royal [R$ 21], mas também colocar um pernil que é uma espécie de "filé de brontossauro", que serve três pessoas. Faremos almoços executivos com alta qualidade, mas preço justo, na casa dos R$ 30".

Atala confessa que, apesar de ter fechado o negócio com Facundo "por telefone mesmo", passa muito tempo no exterior e não pode acompanhar a obra de perto. "Tive medo de sentir um vazio no peito, mas o lugar ficou melhor do que imaginei."

Prestes a conferir a reabertura da casa, Renato diz que facilitou a venda da marca quando soube que era para a dupla. "Aquele ponto ia virar uma farmácia. Agora, vai ser fabuloso. Eu jamais deixaria o Riviera cair em mãos erradas."


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