Folha de S. Paulo


Comunidade lituana na zona leste luta contra orelhões em forma de 'matrioska'

Orelhões em forma de "matrioska" são o pior pesadelo dos descendentes de lituanos que moram na Vila Zelina, bairro com ares de interior ao lado da Mooca, na zona leste.
Não querem nem imaginar o lugar, fundado por seus avós, repleto de símbolos russos, como a boneca que tem sempre mais bonequinhas dentro.

Tudo começou quando o presidente da Amoviza (associação do bairro), Victor Gers -um descendente de russos bem alto, com bochechas vermelhas-, decidiu criar ali um "bairro do leste europeu", nos moldes da japonesa Liberdade.

O alerta disparou no início do ano, após matéria feita com Victor no jornal "Gazeta Russa". O título: "Vila Zelina, um bairro russo". A comunidade lituana protestou, e Victor anunciou publicamente o cancelamento do projeto.

Foi aí que, segundo os lituanos, uma espécie de guerra fria começou. A feira de artesanato e culinária, até então organizada na Vila Zelina pela associação, foi transferida para as imediações. O estatuto da entidade, dizem, foi modificado para incluir bairros próximos, como Vila Lúcia, Vila Bela e Vila Alpina. Todos eles têm maior presença de outras comunidades do leste europeu, e há igrejas russas tradicionais nas imediações.

DE QUEM É O BAIRRO?

Procurado pela sãopaulo, Victor disse que a associação ainda quer tocar o projeto do bairro decorado, mas por enquanto só em 47 ruas das imediações. A pequena Vila Zelina fica intocada, diz, embora com a possibilidade de sobrar no meio de uma espécie de cerco temático.

"Cinco famílias, que participaram da construção da igreja, criaram uma polêmica. Decidimos colocar em hibernação a tematização das ruas próximas à igreja de São José [levantada pelos lituanos]", diz ele.

"Quem está com duas famílias em nome de uma comunidade inteira é o Victor", reclama Sandra Mikalauskas, que dirige a revista "Musu Lietuva" (Nossa Lituânia).

Agora, os lituanos querem evitar que a história da cortina de ferro (leia ao lado) se repita no bairro.

Audra Zizas, 24, bisneta de lituanos, afirma que a luta contra as "matrioskas" e suas variações uniu mais a comunidade. Agora, pretendem documentar a história do lugar. "Montaremos um acervo com os dados históricos de nossa participação e nossa inegável história aqui."

Consta para moradores que o responsável pelo loteamento do bairro foi um lituano de ascendência russa.

"O dono das terras, o senhor Monteiro Soares Filho, queria vender lotes para os lituanos que estavam se instalando na Vila Bela e contratou alguém que falasse lituano para fazer as vendas. Também ofereceu como atrativo a doação de um terreno para a construção da igreja", diz a mãe de Audra, Janete Zizas.

Nas décadas de 1920 e 1930 migraram para o Brasil lituanos que saíram de territórios ocupados pela Polônia. Já no pós-Segunda Guerra, vieram fugindo da ocupação russa.
"O bairro não precisa de tematização. Já é tematizado!", diz Janete.

Para ela, a igreja de São José, financiada e construída em mutirão por imigrantes lituanos (entre eles seus avós), o colégio fundado por freiras americanas de ascendência lituana, a "Musu Lietuva", o grupo de danças folclóricas e o coral mostram qual é a história do bairro.

Um passeio na Vila Zelina também revela um pouco da presença daquele povo ali. Imobiliária Kaunas e edifício Kaunas (cidade lituana), Ótica Lituânia, o tapete do restaurante que diz "sveiki atvyke" (bem-vindo em lituano) são alguns sinais.

Tem também o Bar do Vito e a rotisserie Delícias Mil, da dona Helena Trinkunas Dzigan, 69, uma matriarca lituana que diz não estar gostando do clima de fofocas que se instalou no bairro por causa do embate.

Entre uma porção de Silke (sardinha em conserva) e outra de Virtiniai (massa recheada), dona Helena serve também um comentário: "Todo mundo sempre foi amigo. Eu não acredito sequer que ele [Victor] teve a ideia de por 'matrioskas' no orelhão, uma coisa assim tão vistosa".

Segundo Victor, na Vila Prudente, distrito da zona leste do qual a Vila Zelina faz parte, vivem descendentes de 13 nacionalidades do leste europeu. Na Vila Zelina, são sete: russa, lituana, búlgara (estes em maior número, diz), além de ucraniana, romena, tcheca e húngara.

Adriana Satkunas, que é neta de russos e lituanos, é a favor da tematização. "Não ia ter só 'matrioskas'." Por causa do apoio ao projeto de Victor, diz que levou um dedo na cara de outra descendente de lituanos na feira de artesanato. "Disse que eu estava renegando minha raça."

Após os conflitos com a Amoviza, a comunidade lituana afirma que tentou participar mais ativamente da associação, procurando filiar representantes, mas que as tentativas foram em vão. Victor Gers diz que a participação no grupo é aberta e que nenhuma dificuldade foi criada.

Em uma das conversas com a sãopaulo sobre as acusações, Victor se irritou: "Eu te proíbo de publicar qualquer coisa nossa".


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