Folha de S. Paulo


Manual da gentileza indica como viver melhor em SP

A plataforma está lotada. O metrô chega, os vagões também estão cheios. As portas se abrem e a luta começa. Ninguém consegue sair, ninguém consegue entrar: na ânsia por não perder o trem, os passageiros da plataforma começam um embate físico com os do vagão.

É difícil encontrar quem ande de metrô em São Paulo e nunca tenha vivido uma cena como essa. Ou quem ande na rua e não tenha visto alguém jogar lixo no chão, esbarrar em outro pedestre sem pedir desculpas ou parar no meio de uma calçada movimentada para atender o celular.

Em uma cidade onde até as regras mais simples e lógicas de convivência --como deixar as pessoas saírem antes de entrar-- são constantemente ignoradas, é fácil estampar no paulistano os rótulos de rude e apressado. Mas se a lista de grosserias na metrópole é imensa, a de gentilezas também é.

Apesar da ideia geral do caos e individualismo, um olhar de perto revela a existência de inúmeras boas práticas urbanas, segundo o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, coordenador do NAU (Núcleo de Antropologia Urbana da USP).

"Boa prática é aquela da troca, do contato, da verdadeira convivência --que permite dar, receber e retribuir."

A sãopaulo ouviu psicólogos, síndicos, urbanistas, especialistas em etiqueta e paulistanos engajados para saber: como agir para melhorar a convivência na cidade?

A fisioterapeuta Evelin Scarelli é uma das pessoas que se propõem a tornar a cidade mais gentil. No seu aniversário de 25 anos, na semana retrasada, ela reuniu 15 amigos no parque Ibirapuera, zona sul, e saiu distribuindo presentes para desconhecidos. Desconfiadas, as pessoas perguntavam: "Mas é de graça?", "É uma ação publicitária?".

GENTILEZAS
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A ideia na verdade era dividir com os amigos uma experiência que Evelin já vive no dia a dia.

Depois que se recuperou de um câncer diagnosticado há um ano, ela começou a distribuir lenços para esconder a falta de cabelo a outras vítimas da doença. Depois, passou a incentivar outras mulheres a fazer o mesmo.

Assim como quem recebeu os presentes de Evelin, a hoteleira Vivian Siqueira, 31, tem se surpreendido com a boa vontade alheia. No ano passado ela teve um problema no joelho e, incapaz de dobrar a perna, começou a usar muletas na rua. E viu-se cercada por uma legião de boa vontade.

Desde então, os carros sempre param para Vivian atravessar, os vizinhos ajudam a levar compras para o apartamento, alguém sempre se levanta para ela sentar. "Na correria de São Paulo, a gente imagina que as pessoas não tenham solidariedade. Mas comigo não está sendo assim."

CONTE ATÉ DEZ

A mesma pessoa que dá o lugar para Vivian na fila do supermercado pode ser a que impediu a saída dos passageiros no metrô 15 minutos antes, explica a professora da PUC-SP Marlise Bassani, especialista em psicologia ambiental e qualidade de vida.

"A não ser em casos patológicos, não existem pessoas que são sempre agressivas e outras que são o tempo todo gentis." Marlise afirma que tornar a convivência melhor não é apenas uma questão de altruísmo, mas de treino.

Trânsito caótico, problemas no condomínio e no trabalho são fatores de estresse para qualquer pessoa.

"É normal ter raiva. Mas é preciso treinar para responder de maneira menos agressiva", afirma a psicóloga.

Em maio, o governo estadual aderiu ao programa "Conte Até 10", criado no ano passado pelo Ministério Público. O objetivo da campanha é justamente evitar crimes cometidos por impulso e impedir que atritos do cotidiano se transformem em histórias trágicas --como a do empresário que matou os vizinhos por causa de constantes brigas por barulho. O crime aconteceu na semana passada no condomínio de alto padrão Bosques de Tamboré, na Grande São Paulo.

ESPAÇOS COMPARTILHADOS

Mas, se o confronto de interesses entre vizinhos é inevitável, o desfecho pode ser positivo. Quando se mudou para seu atual apartamento em Higienópolis, região central, a apresentadora Adriane Galisteu, 40, começou uma reforma apenas nos horários permitidos pelo condomínio.

Mesmo assim, Jô Soares, que mora no mesmo prédio e acorda tarde, ficou incomodado. Galisteu então mudou o horário das obras, coisa pela qual Jô a agradeceu em seu programa.

"Ele foi um querido. Depois até mudamos a norma do condomínio proibindo obras muito cedo", conta ela.

Outro caso foi vivido pela administradora de empresas Cecília Lotufo, 38. Criadora do Movimento Boa Praça, ela recupera praças e promove piqueniques com ajuda de outros moradores da Lapa e de Alto de Pinheiros.

Um vizinho certa vez apareceu revoltado durante um evento, reclamando de objetos de madeira que faziam parte de um trabalho de estudantes de arquitetura na praça. Conversando com paciência, Cecília conseguiu explicar todo o projeto. "O cara se envolveu tanto que agora virou frequentador dos piqueniques."

"Os espaços públicos são tão poucos perante a dimensão da cidade que é natural que se dispute cada centímetro", diz o arquiteto Ciro Pirondi, diretor da Escola da Cidade. Ele também cita como exemplo a praça Roosevelt, reinaugurada ano passado. Atritos entre moradores do entorno e skatistas acabaram em um acordo delimitando a área que os esportistas podem usar.

Segundo Magnani, reocupar o espaço público é o que ajuda a aumentar as boas práticas urbanas. Ele diz que a cidade precisa de mais eventos como a Virada Cultural e a bicicletada. "Não quer dizer que não haja conflito, mas é ali que a convivência se dá. [Esses eventos] ajudam as pessoas a se acostumarem com a vida pública", diz.

O produtor cultural Lucas Pretti, 29, idealizador do festival BaixoCentro, concorda e dá exemplo. Em uma edição do festival, uma tela de cinema foi montada embaixo do Minhocão, onde não havia tomada. Foi quando Gabriel e seu pai, que moram em um prédio ao lado, ofereceram a tomada do seu apartamento. "Eles podiam reclamar do barulho, mas resolveram ajudar. Foi incrível", diz Pretti.

BOM NEGÓCIO

Atos como esse têm sido incentivados até por empresas. É o caso da Porto Seguro, que desde 2009 tem a campanha "Trânsito+gentil", e do café Ekoa, na Vila Madalena, zona oeste, que incentiva o cliente a deixar um café pago para o próximo freguês.

Mesmo que a publicidade não cause mudanças efetivas, ela melhora a imagem da empresa, segundo João Matta, do curso de publicidade e propaganda da ESPM. "Mas é preciso ser consistente. Fica hipócrita uma marca que não tem ações cidadãs ter o discurso de 'vamos ajudar a cidade.'"

Algumas se propõem elas mesmas a promover melhorias --como as que adotam praças e canteiros. Já a incorporadora Huma vende uma 'gentileza arquitetônica' como diferencial do seu primeiro empreendimento, na Chácara Kablin. O muro do prédio será recuado e vai haver um jardim e um banco de praça abertos para a rua, que todos poderão usar.

E você, leitor, quando fará sua próxima gentileza?

Christopher Rouleau ©

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