Folha de S. Paulo


Animais abandonados refletem o desprezo de seus antigos donos

São 11h de uma terça-feira fria. Barba, Mailon, Menina e Jurema caçam o sol para o cochilo matutino no terminal de ônibus de Cidade Tiradentes, zona leste. Não parecem se incomodar com o ir e vir de ônibus e passageiros. Ou com a voz que, do alto-falante, repete: "Não alimentem os cães dentro do terminal. Colabore com a administração, com a higiene e evite atrair outros animais".

O aviso não impede que o pesquisador Cícero Augusto Gonsalez, 60, usuário do terminal, atenda aos pedidos de Jurema. Rabo abanando, ela ganha carinho e uma esfirra. "Sou teimoso mesmo", diz ele, admitindo alimentar os animais.

Pouco se sabe sobre a origem de Jurema assim como a de outros cães do local --eram nove no dia da visita da sãopaulo. Por lá, dizem que eles foram despejados já adultos. O abandono de pets, porém, não é restrito ao terminal de ônibus, mas acontece em toda a cidade.

"Problemas comportamentais do bicho são uma das causas mais comuns para o abandono", explica a veterinária Ligia Issberner Panachão, 27, especialista no comportamento de cães e gatos. "A pessoa cria expectativas a respeito do animal e, se ele não corresponde, ela o abandona."

Especialistas e ativistas em prol dos direitos dos animais defendem que o futuro dono de um bicho, seja ele comprado ou adotado, deve ter em mente que o pet não é brinquedo -fofo quando filhote, descartável quando adulto. "É importante pensar que ele vai viver por 12, 15 anos", diz Vanice Orlandi, 47, presidente da ONG Uipa (União Internacional Protetora dos Animais).

Para Tamara Leite Cortez, veterinária do CCZ (Centro de Controle de Zoonoses), da prefeitura, que hoje conta com 400 cães e cem gatos disponíveis para adoção, a conscientização do dono é fundamental para evitar adoções ou compras irresponsáveis. "É preciso entender que o bicho é um ser vivo, que merece cuidado e respeito."

PETS
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Frequentador assíduo do terminal de Cidade Tiradentes há anos, Cícero estima que o número de animais no local tenha aumentado. A aposentada Nadir Conceição, 61, no bairro há 21 anos, concorda que o número de cães lá cresceu de uns três ou quatro anos para cá.

Não há dados oficiais, porém, a respeito do número de cães e gatos sem donos ou cuidadores na cidade. Marco Campi, presidente da ONG Arca Brasil, estima que os pets abandonados representem 10% do total que vive em residências. Estudo com dados de 2006 a 2009 feito pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP em parceria com a prefeitura estimou 2,5 milhões de cães e 562 mil gatos domésticos na capital.

A lei municipal nº 15.023, de 2009, ajuda a explicar uma maior percepção de bichos zanzando pelas ruas. Ela põe fim ao recolhimento de animais sadios das vias públicas, que antes era feito indiscriminadamente e hoje fica restrito a situações de sofrimento, suspeitas de transmissão de zoonoses, agressão ou invasão comprovada a instituições públicas.

Nas regiões periféricas da capital, eles são mais notados, já que há uma menor circulação de carros e uma menos frequente coleta de lixo, explica Ricardo Augusto Dias, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP.

Segundo a Ecourbis Ambiental, responsável pela coleta em parte da cidade, o lixo domiciliar é recolhido três vezes por semana em Cidade Tiradentes. Em bairros centrais, como Higienópolis e Sé, a coleta é diária, realizada pela concessionária Loga.

MAIS ABRIGOS?

Atualmente, a prefeitura conta apenas com o canil e o gatil do CCZ para animais abandonados, e o foco deles é a saúde pública, ressalva a veterinária Tamara Leite. "Não temos como missão o cuidado da fauna."

Assim, sobra para ONGs suprir a falta de vagas para esses bichos, mas muitas delas já trabalham em sua capacidade máxima. A Uipa, por exemplo, acolhe hoje 800 cães e 400 gatos. A presidente Vanice Orlandi, 47, diz que a organização, então, recebe pets de acordo com a urgência. "É difícil rejeitarmos animais atropelados ou fêmeas grávidas."

Já a Cão Sem Dono trabalha com um número máximo de 250 cães. Atualmente com 203, recebem apenas animais que correm risco de morte.

Funcionária da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, a socióloga Marta Gonçalves, 47, já recolheu 12 gatos de parques e adotou cinco deles. Mas reclama que não haja um órgão público atuante na proteção de cães e gatos --enquanto animais silvestres são encaminhados a órgãos ligados à secretaria onde trabalha, os outros ficam à deriva.

A lei nº 15.023 institui a criação do Probem (Programa Municipal de Proteção e Bem-Estar de Cães e Gatos), ligado à Coordenadoria Especial de Proteção a Animais Domésticos. A Secretaria da Saúde afirmou, porém, que o programa passa por uma reestruturação.

Para Vanice, a cidade precisa de um abrigo público. "Sempre existirão animais abandonados." Já Ricardo questiona a criação indiscriminada de novos espaços --"Se tivermos mil vagas, teremos mil cães."

Consenso entre os entrevistados é a formação, via políticas públicas, de do­nos responsáveis, que entendam a importância de registrar o pet, além de cuidar de sua saúde e de seu controle reprodutivo.

Como explica Ligia Issberner Panachão, não adianta esperar pouco trabalho de um "border collie" --cão de pastoreio cheio de energia-- dentro de um apartamento.


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