Folha de S. Paulo


"Pele de vidro" se torna padrão para edifícios corporativos em SP

É segunda-feira. Márcio Baronti, 39, chega à avenida das Nações Unidas, na zona oeste, para mais uma semana de trabalho. Por volta das 8h, já se acomodou em sua cadeira, bem em frente ao paredão envidraçado de um moderno edifício corporativo.

De capacete e rodinho na mão, ele ginga ao ar livre, cara a cara com o pessoal do setor de recursos humanos. Melhor começar logo, são 20 andares de fachada para limpar.

Desde que começou no ramo, há três anos, a empresa em que Márcio trabalha aumentou o número de funcionários de três para 48, para dar conta dos novos quilômetros quadrados de "pele de vidro" dos prédios de escritórios paulistanos.

Controversos entre os defensores do modernismo arquitetônico brasileiro --que usava muito vidro, mas explorava a ventilação natural--, os paredões envidraçados totalmente vedados se tornaram padrão para grandes empresas. São os preferidos, especialmente pelas multinacionais, para as quais estar em edifícios de eficiência ambiental certificada é parte essencial da estratégia de marketing.

Os novos vidros seguram boa parte do calor do lado de fora por ter uma película refletiva feita de metais. Assim, diminuem a necessidade de luz e de ar-condicionado, e o resultado é um menor consumo de energia.

Esses "prédios verdes" somam 24% dos 1,8 milhões de metros quadrados de escritórios em edifícios de alto padrão ("triple A") que ficam prontos até 2016, segundo a consultoria Cushman & Wakefield.

Outro desejo das grandes empresas --e aí não importa se estrangeiras ou nacionais-- é estarem vinculadas à ideia de modernidade e tecnologia que os envidraçados inspiram.

ONDA

Embora emblemáticos edifícios com fachada de vidro, como o Segrams, do arquiteto Mies Van der Rohe, em Nova York, tenham sido construídos antes dos anos 1950, seu poder de atração resistiu à passagem do século e foi renovado pelos desenvolvimentos tecnológicos.

Essas vantagens, somadas ao baixo custo de limpeza e conservação da fachada, e à rapidez na construção, estão mudando a paisagem das principais regiões de escritórios de alto padrão: Faria Lima, Berrini, marginal Pinheiros e Vila Olímpia.

Um emblema recente dessa arquitetura é o edifício Pátio Victor Malzoni, inaugurado no final do ano passado na avenida Brigadeiro Faria Lima, 3.477. Famoso por manter uma casa bandeirista do século 18 e abrigar o escritório do Google no Brasil, o projeto do escritório Botti Rubin terá suas atenções divididas com outro grande envidraçado até o fim do ano.

Logo em frente, no número 3.500, já se vê a rua refletida no edifício que lembra um diamante. É uma obra da incorporadora americana Tishman Speyer (dona de prédios como o Rockefeller Center, em Nova York), com projeto do escritório KOM. Será a nova sede do banco Itaú BBA.

A poucos quilômetros dali, cinco novas torres espelhadas vão se juntar aos empreendimentos comerciais da avenida das Nações Unidas. O Parque da Cidade, da construtora Odebrecht, é um complexo de prédios empresariais, hotel, shopping e edifícios residenciais. O projeto é do escritório Aflalo & Gasperini, nome já associado na cidade a esse tipo de arquitetura de vidro.

Na avenida Paulista, onde antes estava a mansão Matarazzo, de linhas clássicas, mais um "pele de vidro" multiúso, com shopping e escritórios, de Aflalo & Gasperini, em construção pela Cyrela.

De olho nesse mercado, duas novas indústrias de vidro plano, matéria-prima para o vidro das fachadas, vão montar operações no Brasil.

Uma delas é a líder mundial AGC, que, segundo Lucien Belmonte, superintendente da Abividro (associação de empresas produtoras de vidro), investirá R$ 1 bilhão em sua nova fábrica em Guaratinguetá, no interior de São Paulo. Com isso, a produção (60% dela voltada para a construção civil) crescerá 114% até o final deste ano, em comparação com 2009.

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HISTÓRIA

A ênfase no uso do vidro surgiu com as vanguardas do século 20 e com a arquitetura moderna, diz Guilherme Wisnik, arquiteto, crítico e curador da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo. Foi quando os espigões com grandes aberturas transparentes se espalham por Nova York e Chicago. "Esse prédios construíram, ao mesmo tempo, a imagem da arquitetura moderna e a imagem da arquitetura corporativa nos anos 1950 e 1960."

No entanto, o primeiro edifício alto com fachada inteira de vidro do mundo foi construído no Brasil. É o prédio do Ministério da Educação, ou edifício Gustavo Capanema (veja a linha do tempo), de 1945, considerado marco do modernismo brasileiro. Além de buscar os traços retos e o uso extensivo de vidro, o prédio adota o "brise soleil" (para-sol) e ventilação cruzada (em que o vento atravessa a edificação sem ser barrado por paredes). "É uma matriz da ideia de uma arquitetura sustentável para os trópicos", diz Wisnik.

Segundo o arquiteto Fernando Serapião, entre o modernismo e a "pele de vidro", os prédios envidraçados paulistanos conheceram a fase do vidros fumês e verdes, numa tentativa de barrar o calor excessivo, mas já sem os "brises". Não deu muito certo. "A partir dos anos 1970, os empreendedores passaram a não se importar com proteção nas fachadas e havia problemas de insolação e uso de ar-condicionado a todo vapor".

Essa cópia do modelo americano em São Paulo gerou fortes críticas, já que os arquitetos brasileiros haviam desenvolvido, décadas antes, soluções de resfriamento tidas como verdadeiramente tropicais.

As fachadas em vidro, mas sem para-sóis, acabaram sendo abandonadas nos anos 1990, quando os arquitetos pós-modernos buscaram o resgate de referências históricas e regionais abandonadas no modernismo. Surgem nesse momento os neoclássicos, alguns deles com inusitadas fachadas espelhadas.

CLIMA

Agora, os contemporâneos "pele de vidro" ressuscitam o debate sobre a pertinência de erguer edifícios completamente vedados em uma cidade sem os rigores do inverno do hemisfério norte.

"Você faz um edifício de vidro e enche de ar-condicionado para garantir habitabilidade. Parece um contra-senso", afirma o coordenador do curso de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade, Alvaro Puntoni. "A arquitetura brasileira sempre mostrou como resolver essa questão, adotando soluções tradicionais, de sombreamento da fachada."

Mas, para Roberto Aflalo, 59, da Aflalo & Gasperini, o clima brasileiro não impede o uso dessa solução. "Existem vidros hoje com grande performance, que deixam passar luz mas não deixam passar calor". Isso gera economia no uso de luz elétrica e ar-condicionado e, portanto, de energia. É assim que esses prédios obtêm suas certificações ambientais.

Além disso, em avenidas como Berrini e Faria Lima, onde os edifícios corporativos se concentram, o barulho e a fuligem dos carros acabam tornando inviável o uso de ventilação cruzada, diz Milene Abla Scala, dona do escritório Vivá e diretora de sustentabilidade da Asbea (Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura).

"Se eu abrisse todas as janelas do meu escritório, teria vento levantando folhas da minha mesa. A escolha se dá em função do usuário e do que ele espera", afirma Alberto Botti, 83, sócio do escritório Botti Rubin, outra referência em fachadas de vidro.

E os para-sóis modernistas, onde ficam? Aflalo diz que, ao fazer simulações de consumo energético com para-sol e sem para-sol, a diferença é muito pequena. "Nem chega a justificar o próprio custo. Serviria para alguns momentos do dia". Mas o arquiteto ressalta que, em projetos de edifícios de escritórios menores ou em prédios residenciais, o uso de "brise" é, sim, uma boa opção.

"CATEGORIA"

Outra vantagem dos "pele de vidro" citada pelos arquitetos é a facilidade na manutenção e limpeza da fachada. "São Paulo é uma cidade poluída. Depois de um ano a fachada está suja e vai ter que ser lavada, pintada", conta o arquiteto Jonas Birger, 58. "Há vidro com substâncias que funcionam como catalisadores contra impurezas. Basta chover que ele se 'autolimpa'", diz Luiz Henrique Ceotto, diretor de Design e Construção da Tishman Speyer.

Existe ainda a questão da imagem moderna e tecnológica que esses edifícios passam. "O mercado exige isso, especialmente em lugares de grande visibilidade, como a marginal Pinheiros. Nesses locais eles necessariamente têm de ser de vidro, para mostrar a categoria do prédio [alto padrão]", diz Saulo Nunes, diretor de incorporação da Odebrecht, da obra Parque da Cidade.

Foi o endereço valorizado que levou o escritório de arquitetura KOM a fazer o seu primeiro "pele de vidro", o prédio em forma de diamante na avenida Brigadeiro Faria Lima. "É o endereço. Os prédios de maior destaque estão usando muito vidro", conta Beatriz Ometto Moreno, 51, sócia do escritório e com dois projetos "pele de vidro" em andamento.

Além das questões estéticas e de sustentabilidade, o sistema de construção agiliza a obra e reduz custos, afirma Jonas Birger. "Hoje, antes de acabar o prédio, você já coloca o vidro. O tempo de obra é muito menor", diz. "Nos países desenvolvidos, onde a mão de obra é mais cara, se usa fachada de vidro porque elas são mais econômicas."

"É um pouco chato quando fica uma ortodoxia, uma defesa dos bons exemplos do passado sem olhar para o presente", diz Guilherme Wisnik. Ele concorda que edifícios de escritórios precisam de alta eficiência na climatização e de materiais industriais, como é o vidro. Mas soluções de projeto que minimizem o uso de ar-condicionado são possíveis, diz. Cita como exemplo o prédio do Commerz Bank, em Frankfurt, do "starchitect" americano Norman Foster.

O edifício alemão tem varandas dispostas na fachada de forma a captar a ventilação natural, que é conduzida então para um vazio central. "Tem um efeito chaminé dentro do prédio inteiro, que dá boa climatização sem ar-condicionado".

Enquanto essas inovações criativas não chegam (ou se tornam viáveis) por aqui, a aposta segue nos avanços tecnológicos.

Roberto Aflalo arrisca uma previsão. "No futuro teremos um vidro que escurece de acordo com a incidência do sol. Isso já existe, para óculos, mas para a escala de um edifício ainda não se viabiliza".

Alguns prédios usarão os raios solares que incidem na fachada para gerar energia. No Brasil, isso será realidade já em 2015 com o laboratório de Inovação e Empreendedorismo, da Escola Politécnica da USP, projeto de Ruy Ohtake.

Fontes da linha do tempo: Associação Paulista Viva; Erica de Figueiredo e Maria Augusta Justi Pisani, professoras da faculdade de arquitetura da Universidade Presberiteriana Mackenzie; Fernando Serapião, arquiteto e editor da revista Monolito; Guilherme Wisnik, arquiteto, crítico e curador da 10ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo


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