Folha de S. Paulo


Apesar de viés imperialista, Brasil precisa dos vizinhos, diz Mujica

O presidente do Uruguai, José Mujica, 79 anos, afirma que persiste na América Latina uma sensação sobre o Brasil ser um país imperialista. "A atitude imperial do Brasil pode ter sido consequência de sua história", afirma.

http://www3.uol.com.br/module/playlist-videos/2014/jose-mujica-no-poder-e-politica-1405731431138.js

Em entrevista ao programa Poder e Política, da Folha e do "UOL", ele explica que "o mais inteligente do Brasil é que percebe que, embora seja grande, precisa de um todo para acompanhá-lo na tentativa de fazer algo na negociação mundial". O problema é que falta de integração brasileira interna prejudicaria a posição do país em foros internacionais. E ajudaria a manter a imagem de imperialista.

"Quando há a colheita do arroz no Uruguai, os caminhões começam a passar [em direção ao Brasil]. Há uma parte do Rio Grande do Sul que não gosta. Eles [os brasileiros] estão certos", diz Mujica, que falou na quinta-feira (17), na embaixada do Uruguai, em Brasília.

Mais conhecido por suas posições liberais na área de costumes -como o projeto que legalizou o plantio, venda e consumo de maconha-, Mujica é também a favor de mais integração comercial na América Latina.

Só que o Mercosul está "estagnado". Seus "organismos de arbitragem não funcionam", e tudo tem de ser feito via "chancelarias presidenciais". Para o uruguaio, "os interesses empresariais nacionais são muito fortes e não priorizam a busca da integração. O que existe de mais forte economicamente é a burguesia paulista".

Para ele, "o papel da burguesia paulista deveria ser unir aliados, tentar construir um sistema de empresas transnacionais latino-americanas. Pelo seu tamanho, tem a responsabilidade de conduzir. Mas comete um erro se quiser fagocitar porque, em vez de ganhar aliados, ganha inimigos que se opõem à integração".

"Fagocitar" é um termo emprestado da biologia. Trata-se do processo no qual ocorre a "ingestão e destruição de partículas", na definição do dicionário Houaiss -uma das funções da fagocitose seria a proteção do organismo contra infecções.

Há também a relação entre o Brasil e Argentina. "A Argentina se fecha demais. O Brasil tem paciência estratégica. Mas tudo tem o seu limite", diz Mujica. Para ele, o vizinho passa por uma situação "muito explosiva" por causa da crise com credores externos. "Somos obrigados a defender a Argentina. Se a Argentina entra em crise, todos vamos sentir (...) É uma questão estratégica".

A dificuldade da atualidade, diz Mujica, é que o mundo atravessa uma crise na política. "Não é um problema do Brasil. É um problema global. A política não governa. O processo de globalização anda solto, sem governança. E aqui as forças da economia e da política estão um pouco divorciadas". Ele diz entender os empresários, que precisam "se preocupar com todo fim de mês", mas "há necessidade de ir construindo coisas complementares".

Conhecido como Pepe Mujica, o uruguaio termina seu mandato no início de 2015, quando assumirá o presidente a ser eleito em novembro. Mujica cita o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como responsável pela maior presença do Brasil no plano externo. Diz ter sugerido uma vez ao brasileiro que comandasse a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), mas ouviu um não como resposta.

"O Lula, que é muito astuto e inteligente, dizia-me: 'Olhe, Pepe, se eu for, eles vão dizer... o imperialismo brasileiro' ", relata Mujica. Há diferenças entre Lula e Dilma Rousseff? "Dilma é uma mulher muito trabalhadora, tenaz. Provavelmente, uma boa administradora. Não tem a personalidade política do Lula. E por algum motivo foi eleita pelo Lula, por algo foi eleita".

Se Dilma não for reeleita neste ano, Mujica não acredita "em qualquer cataclismo da política externa" ou que "signifique jogar fora todo o processo de integração".

Neste mês, ele anunciou que a implantação completa da lei que permite plantar, vender e consumir maconha será apenas em 2015, já durante o mandato de seu sucessor no comando do Uruguai. Ele não crê em recuo, mesmo se um opositor vencer.

E por que não colocar em vigor já? Por causa de uma questão agrícola: "É necessário plantá-la [a maconha] e produzi-la. As plantas têm o seu próprio ciclo. É necessário fazer estufas. Estamos fazendo as mudas. Fazendo a reprodução vegetativa. Poderão começar a florescer em janeiro, fevereiro".

Sobre o jogador de futebol Luis Suárez, suspenso depois de ter mordido um atleta da Itália durante um jogo da Copa do Mundo, Mujica se mostra compadecido. "Esse menino tem algum problema aqui [apontando para a cabeça]. Vem de um lar muito pobre. Tem a inteligência nas canelas. É brilhante nas pernas. A raiva o enfurece e ele não se domina. Era o caso de levá-lo a um hospital para tratá-lo com psiquiatra. É um problema que não se soluciona com sanções"

A seguir, trechos da entrevista concedida em 17 de julho de 2014:

*

Folha/UOL - Como o sr. define a relação hoje entre o Brasil e o Uruguai?
José Mujica - Uma relação cordial, de muito reconhecimento, apesar da diferença notória de recursos e de tamanho. O Brasil, com muita inteligência, olha para o Sul como parte componente de seu espaço geopolítico natural.

Às vezes, na América Latina, nota-se um sentimento sobre o Brasil ser um país com interesses imperialistas. Existe esse sentimento?
Sim, algo assim pode acontecer. É resultado dos inevitáveis flertes nacionalistas que existem por todas as partes. A atitude imperial do Brasil pode ter sido consequência de sua história. É um país que teve um imperador que declarou a independência, que herdou a tradição da Casa de Bragança. Teve um Estado constituído muito cedo, de forma um pouco europeia. Teve uma longa discussão de fronteiras, muito inteligente para os interesses do Brasil.

Mas o Brasil de hoje encontra-se imerso em uma época diferente. Todos [os países da América Latina] chegamos atrasados. O mundo está desenvolvido. Ou, pelo menos, uma parte importante dele. O mais inteligente do Brasil é que percebe que, embora seja grande, precisa de um todo para acompanhá-lo na tentativa de fazer algo na negociação mundial. E os que não são o Brasil estão conscientes de que precisamos do Brasil para cumprir esse papel.

O problema está dentro do Brasil. Por quê? Porque há uma corrente de pensamento, válida, que diz que "o Brasil é muito grande e ainda temos de integrarmo-nos como país". E talvez tenham razão, mas já é tarde.

O Uruguai está satisfeito com a relação que tem com o Brasil, sobretudo no aspecto econômico?
Sempre encontramos vontade política para superar as dificuldades em um país grande, com organização federal, onde às vezes surgem curtos-circuitos com os Estados e o governo central. Sempre com paciência, tentamos diminuir o nível das contradições.

Por exemplo, quando há a colheita do arroz no Uruguai, os caminhões começam a passar. Há uma parte do Rio Grande do Sul que não gosta. Eles estão certos.

Em que medida o Mercosul tem ajudado a melhorar essas relações?
O Mercosul não anda muito bem.

Por quê?
Porque existem diferentes visões. Às vezes há uma espécie de protecionismo em alguns países. E a tentativa de criar um espaço comum enfrenta dificuldade. Os organismos de arbitragem, de decisão, a institucionalidade real do Mercosul não funcionam. Funcionam as chancelarias presidenciais. Como é o nosso caso com o Brasil. Resolvemos tudo tentando....

...Diretamente com o Brasil?
Sim. Há visões que são diferentes. A Argentina tem outra visão. Tem o seu problema.

Como resolver esse impasse no Mercosul para melhorá-lo institucionalmente? Ou não é possível?
Vai ter que ser possível. Tudo tem um limite. Estamos, por exemplo, tentando negociar um acordo com a Europa. Todos precisamos disso. Por quê? Porque a presença da China na região está cada vez mais forte. E não podemos fugir disso porque é o principal comprador que temos. Se assim for, é bom ter a outra parte da balança para que nos ajude na compensação porque para ninguém é conveniente depender de um único polo econômico.

O Mercosul avançou pouco?
Sim, acho que está estagnado.

O Mercosul foi uma ideia errada, na sua concepção?
Acredito que os interesses empresariais nacionais são muito fortes e não priorizam a busca da integração. O que existe de mais forte economicamente é a burguesia paulista. Mas já não estamos na época de colonização. O papel da burguesia paulista deveria ser unir aliados, tentar construir um sistema de empresas transnacionais latino-americanas. Pelo seu tamanho, tem a responsabilidade de conduzir. Mas comete um erro se quiser fagocitar porque, em vez de ganhar aliados, ganha inimigos que se opõem à integração.

Em vez de esperar que a burguesia paulista tome a iniciativa de liderar o processo, não seria o caso de esperar que os políticos liderassem o processo?
O que acontece é que o mundo atravessa uma crise na política. Não é um problema do Brasil. É um problema global. A política não governa. O processo de globalização anda solto, sem governança. E aqui as forças da economia e da política estão um pouco divorciadas. É hora de pensar a longo prazo, olhar mais longe. Eu entendo os empresários. Eles têm que se preocupar com todo fim de mês porque, senão... Mas há necessidade de ir construindo coisas complementares.

Por exemplo, o Uruguai não precisa ter uma indústria automobilística, pelas suas dimensões. Mas é preciso se especializar em fazer alguma coisa, alguma autopeça que sirva para o mercado brasileiro. E assim, sucessivamente.

O mesmo acontece na infraestrutura. Portugal fundou a colônia de Sacramento porque percebeu que o centro-sul do Brasil tinha que sair pelo Paraguai-Paraná. E já percebiam que para retirar carga o mais barato é transportar navegando rio abaixo. O Brasil tem que entender isso e deve ter uma política direcionada. A infraestrutura também tem que acompanhar. Essas coisas têm custo e levam tempo.

Por exemplo, há o Porto de Rocha no Uruguai, financiado em parte pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Brasileiro. A oposição no Brasil faz críticas. Como o sr. responde a essas críticas?
Que olhem o mapa. Devem olhar o mapa, por favor. Não há transporte mais barato que navegar rio abaixo. Esse também tem que ser um porto brasileiro. Não se deve ter medo de que os outros portos vão funcionar. O desenvolvimento central do Brasil, da Bolívia, do Paraguai, exige muito mais de logística. Nós, na América, temos a síndrome de armazenador que somente quer estar no bairro onde não há concorrência.

O sr. acha que a presidente Dilma Rousseff pensa dessa forma?
Por exemplo, nós fizemos um acordo elétrico importante. Que permitirá que o sul do Brasil nos venda energia elétrica ou nós vendamos ao Brasil, dependendo das chuvas, onde esteja mais barato. Esse é o caminho certo. Temos que conectar as ferrovias. Temos que fazer muita coisa em comum. Também com a Argentina. Acredito que há um ponto-chave aqui.

Qual?
A relação Argentina-Brasil. Acho que a Argentina se fecha demais. Se fecha para nós. E o Brasil tem paciência estratégica. Mas tudo tem o seu limite.

Estamos perto do limite?
Eu não sei, mas teremos eleições nos dois lados. Pode ser que surja daí alguma variante. A Argentina é um país fundamental, um parceiro natural. Mas essa velha rivalidade histórica tem que ser transformada em uma aliança estratégica. E isso custa. Custa mais para Argentina do que para o Brasil.

A propósito da Argentina, a presidente Cristina Kirchner tem feito muitas críticas em relação aos credores internacionais da Argentina. O sr. concorda com as críticas que a presidente Kirchner tem feito a seus credores?
Existe especulação financeira com a dívida. Comprar papéis muito baratos em tempos de crise e depois pedir... É um absurdo. Provavelmente, essas coisas deveriam ter sido discutidas melhor há muito tempo.

Mas agora chegou numa situação crítica.
Agora temos uma situação muito explosiva, muito pública.

Como resolver?
Terá que aguentar uns cinco ou seis meses. Se aguentar cinco ou seis meses, tudo vai se ajustar porque as obrigações legais vencem agora, no tempo devido. É um problema difícil.

O que acontece é que somos obrigados a defender a Argentina. Por quê? Porque se a Argentina entra em crise, todos vamos sentir. E, sobretudo, nós. Temos uma história: Quando a Argentina vai bem, nós também. Quando a Argentina vai mal, nós...

O apoio à posição da Argentina é mais estratégico do que propriamente por convicção sobre o que deve ser feito?
Sim, é uma questão estratégica. Além de precisarmos nos cuidar diante do mundo, a questão financeira não pode sepultar o econômico. O econômico deve estar acima do financeiro. Temos os papeis trocados neste mundo. E isso faz parte das contradições da época em que vivemos. Algumas coisas são inexplicáveis: a crise dos Estados Unidos, a crise em partes da Europa. Tudo vem do financeiro. Temos que aprender com a realidade.

Qual foi o resultado prático da reunião da Unasul e dos Brics nesta semana?
Do ponto de vista prático, o mais importante foi a decisão da criação do banco [o Novo Banco de Desenvolvimento, anunciado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul]. Expressa a vontade de que uma alternativa sobreviva no tempo. Quando estamos negociando com a Europa, com forte resistência dentro da Europa, quando temos sérias dificuldades de consideração com os Estados Unidos, é bom que a outra parte do mundo se preocupe com nós. Para que fique mais claro, ganhamos uma melhor cotação internacional. Não devemos depender 100% de um. Temos que ter a inteligência para estar abertos para o resto de mundo. Isso não significa vender a alma, nem vender a economia. E sim uma maneira inteligente de enfrentar a incerteza.

O banco que foi anunciado pelos Brics tem duas mensagens. A primeira, é geopolítica. A outra, a econômico-financeira, só terá efeitos no futuro. Para a América do Sul, qual efeito teria além dessa mensagem política?
Acho que é a construção de uma alternativa, de uma variável a mais. Nós não temos que brigar com o Banco Mundial, nem com o Fundo Monetário, mas, quanto mais disponibilidade tenhamos no horizonte, melhor será. Além disso, devemos pensar, estrategicamente, em formas de intercâmbio que nos permitam compensar moedas. Outra forma comercial. Parece-me que é uma necessidade do mundo vindouro. Porque nós estamos vinculados a uma moeda, o dólar, que é como medir com uma cinta métrica de borracha. Ampliam, reduzem e não temos nada a fazer.

Há uma especulação sobre o sr., depois que deixar a presidência do Uruguai, passar a comandar a Unasul (União de Nações Sul-Americanas). O sr. tem interesse em fazer esse tipo de atividade?
Eu pedi muitas vezes ao Lula, que devia ceder.

E ele?
O Lula, que é muito astuto e inteligente, dizia-me: "Olhe, Pepe, se eu for, eles vão dizer... o imperialismo brasileiro". É, talvez. A Unasul é importante como organismo político. Mas devemos ter a inteligência para respeitar as nuances políticas que há na América.

Lula fez uma sugestão ao sr. para que fosse para a Unasul depois de deixar a Presidência do Uruguai?
Sim, ele fez. Lula é um ativista da integração, para unir. Ele faz tudo o que pode.

Mas o sr. tem interesse em fazer isso no ano que vem?
Olhe, você sabe o que é envelhecer? É não querer sair de casa. Mas é possível que tente ajudar um pouco, por um tempo. Com muito respeito, mas estou com quase oitenta anos.

O sr. tem interesse em fazer um projeto social na sua chácara no Uruguai, depois de deixar a Presidência?
É uma ideia de fazer uma espécie de fazenda-escola, com trabalho de horticultura. E para aproveitar uma série de coisas que tenho. Sou um campesino frustrado. Amo a terra. E acredito que há muitas coisas para mostrar aos meninos, aos que virão. Tenho uma fazenda que está um pouco abandonada, mas tenho os meios. Como comecei a consertar o mundo há muitos anos, quando era jovem, não tive filhos. É o que eu tenho. Vou deixá-lo para os jovens que virão.

Voltando à geopolítica: os países dos Brics não têm muita afinidade entre si
Nenhuma.

Qual a chance de dar errado?
A afinidade é que eles têm problemas comuns. São potências emergentes que estão procurando seu lugar sob o sol. Precisam disso. Essa é a parte em comum. Depois, a China tornou-se a oficina do mundo. Os outros são os fornecedores de matérias-primas, de commodities. Estamos entrando aceleradamente em uma época diferente. Temos que começar a pensar a Terra por inteiro, mas temos culturas nacionais. Essa responsabilidade, em primeiro lugar, é dos países maiores. Pensar dessa forma significa sacrificar parte da soberania para garantir a vida do planeta. Começam a surgir no horizonte problemas que não víamos, mas precisam de respostas globais. O mundo do futuro precisa de governança. Isso não fará com que o Estado nacional desapareça. Isto significa que há problemas que nenhum país pode solucionar sozinho.

A propósito, o sr. foi aos Estados Unidos e esteve com o presidente Barack Obama. Houve uma conversa sobre o Uruguai receber presos de Guantánamo. Como está essa oferta neste momento?
Nós dissemos que nos pareceu uma causa justa, porque sempre criticamos os Estados Unidos pela prisão de Guantánamo. Não se pode defender a democracia, o Estado de direito, e depois ter prisioneiros sem julgamento e sem tribunais. É uma contradição. Este presidente americano fez campanha e disse isso. Mas ele não é um monarca, não é um rei, é apenas um presidente. Portanto, não conseguiu.

Foi feita a oferta?
Sim, acho que tínhamos que ajudá-lo.

E como ele respondeu?
Ele depende de uma autorização do Congresso e teve muitas dificuldades.

E neste momento, está parado?
Está parado. Acho que haverá alguma decisão e o Congresso terá 30 ou 60 dias para fazer as objeções e depois...

E como funcionaria? O Uruguai receberia uma quantidade de presos de Guantánamo?
Cinco ou seis [presos]. E nós queremos que outros países da América entendam isso. Porque também devemos ajudar Cuba. Não podemos falar todos os dias sobre direitos humanos e proferir lindos discursos e não ter compromisso.

Esses presos de Guantánamo teriam qual status no Uruguai?
Seriam refugiados. Ou seja, como homens livres. E, se quiserem ir embora, irão. Legalmente. Nós não seremos carcereiros dos Estados Unidos.

No Uruguai há cerca de 250 colombianos. Que vieram devido aos problemas na Colômbia. O Uruguai é um país de pessoas refugiadas que chegaram de todos os lados.

O sr. mencionou Cuba. O sr. acredita que hoje Cuba pode ser considerada uma democracia?
Com as definições do Ocidente e da democracia representativa, não. Com as definições marxistas e leninistas de democracia popular, certamente. Mas não me preocupa tanto. De qualquer forma, o que se possa negar de Cuba, ao lado da China, parece-me ridículo. E ninguém tem problemas com a China. Isto significa que criamos muito problema com Cuba porque é pequena. E, com a China, como precisamos dela, vendemos para ela e compramos dela, fazemo-nos de distraídos.

Cuba tem o sonho de se tornar uma democracia sem classes sociais. Já paga um preço alto. Mas Cuba, e qualquer outro país, deve ser respeitado. Para conviver neste mundo há uma regra de ouro: aprender a respeitar aquele com o qual estamos em desacordo. O mundo é diferente. As culturas árabes, as culturas muçulmanas têm diferentes valores e pontos de vista divergentes aos nossos. Devemos respeitar, pois, caso contrário, as contradições são explosivas.

Dos presidentes recentes brasileiros, Fernando Henrique, Lula e Dilma, que foram eleitos pelo voto direto, qual deles trabalhou mais pela integração do continente?
Lula. E Lula projetou o Brasil para fora.

Que avaliação faz do período dos três na Presidência do Brasil?
Há dois Fernando Henrique. Um que foi governante e há um anterior, o pensador. Ele nos ajudou a pensar muito na economia etc. Ele é uma figura importante no pensamento da América. Na verdade, todos os três, cada um de sua própria maneira, contribuíram muito. Mas devemos ter presente que Lula é um personagem que quebrou o molde. Ele tem algo muito difícil de definir, mas que o faz muito bem, que é a arte da negociação. De juntar as pessoas, aproximar os extremos, encontrar soluções para os problemas que não têm solução.

E Dilma?
Parece-me que Dilma é uma mulher muito trabalhadora, tenaz. Muito preocupada e, provavelmente, uma boa administradora. Não tem a personalidade política do Lula. Talvez seja uma mulher de Estado, do funcionamento da máquina do Estado. Essa é a minha impressão. E por algum motivo foi eleita pelo Lula, por algo foi eleita.

O Brasil tem eleições este ano. Para o continente, é melhor a reeleição da presidente Dilma ou uma alternância de partidos?
Não acredito em qualquer cataclismo da política externa. Embora não haja reconhecimento, parece-me que a política exterior do Brasil, em termos gerais, é compartilhada. As diferenças estão em outras coisas. Uma mudança na direção do Brasil, não acredito que signifique jogar fora todo o processo de integração. Sempre tenho visto atrás do Lula, da Dilma e do Fernando Henrique a figura do Itamaraty.

E no Uruguai, como está a sua sucessão?
Estamos em plena discussão eleitoral. Os números estão iguais a quando saí como candidato. Não sabemos se será definido no primeiro turno. E o segundo turno é muito disputado no Uruguai. Mas tenho confiança que será mantida no governo a força política com o equilíbrio justo.

Os candidatos principais são quais, no momento?
Tabaré Vázquez, que já foi presidente.

Que é o seu candidato.
Sim. E um médico, [Luis Alberto] Lacalle Pou, filho de um ex-presidente. Outro médico, [Pedro] Bordaberry, candidato pelo Partido Colorado. Acho que são os três candidatos principais.

As pesquisas mostram nosso candidato com 43 a 44%. E 30% para o Partido Nacional. E cerca de 15% para o Partido Colorado. Mas, no segundo turno, a soma não é automática.

Como avaliar o desempenho das esquerdas, em geral, no mundo atual? Na Europa há um avanço de partidos da direita...
Sim, notório.

Como isso funciona na América Latina?
Na América Latina parece que acontece o contrário da Europa.

Por quê?
Primeiramente, tampouco é esquerda... é "ma non troppo" [mas não muito].

Acredita que o Brasil é assim?
É uma esquerda moderada que procura que o sistema funcione e que luta para distribuir um pouco melhor. Às vezes, os discursos são mais radicais, os discursos.

Mas a prática?
Veja o Evo. Ele tem um discurso muito radical.

Evo Morales?
Sim. Veja a situação fiscal da Bolívia. Acredito que é a primeira vez, na história da Bolívia, que há superávit fiscal longo. Tem demonstrado ser um bom administrador. Com Correa passa-se algo semelhante. É como se os latino-americanos tivéssemos aprendido com a dor.

E aprendemos uma espécie de lição meio genérica que não é nem da esquerda, nem da direita. Há coisas com as quais não se brincam.

O time de futebol do Uruguai estava indo muito bem na Copa do Mundo, mas um jogador, Luis Suárez, acabou sendo suspenso por morder um jogador da Itália. O que aconteceu?
Esse menino tem algum problema aqui [apontando para a cabeça].

O sr. conversou com ele?
Eu fui recebê-lo. Ele vem de um lar muito pobre e tem a inteligência nas canelas. É brilhante nas pernas.

Ele contou ao sr. por que mordeu?
Não, talvez tivesse vergonha. Acho que a raiva o enfurece e ele não se domina. Mas era o caso, na verdade, de levá-lo a um hospital. Para tratá-lo daqui [apontando para a cabeça], com psiquiatra. É um problema que não se soluciona com sanções.

Não discuto a sanção desportiva. O que discuto são algumas coisas que não têm nada a ver com a sanção. Não poder entrar no campo, não poder estar com os colegas na concentração, quatro meses sem poder ir a uma campo de futebol, não pode ir sequer a uma cerimônia de apoio, a qualquer evento público desportivo com fins de beneficência. Estamos loucos! Nenhum governo pode proibir que alguém entre em um campo de futebol se não tiver a assinatura de um juiz. E, vem a Fifa e "não pode entrar em um campo por quatro meses, nem na arquibancada".

Por que acha que a Fifa aplicou essa sanção a Suárez?
Porque tem uma mentalidade de velhos que querem resolver as coisas castigando, e, ao castigar, a única coisa que se gera é ódio e ressentimento. Esse menino precisa de uma ajuda aqui [apontando para a cabeça].

E como ele reagiu quando o sr. falou com ele?
Ele tem que pedir perdão ao seu povo. Não tem que pedir perdão à Fifa, nem a ninguém, mas ao seu povo.

Ele era uma carta de esperança. É desses caras geniais que, de repente, não jogam durante todo o jogo, mas, de repente, entram e fazem dois gols. Como fez na Inglaterra. E, bem, vamos vê-lo com o Neymar e com o Messi, à frente do Barça. Não sei como vão fazer.

Sobre o tema da legalização da maconha: a comercialização foi adiada. O que aconteceu e por quê?
É necessário plantá-la e produzi-la e, do ponto de vista agrícola. As plantas não funcionam para o que nós queremos, têm o seu próprio ciclo e isso leva um tempo. Além disso, é necessário fazer estufas.

Mas, já estão em produção?
Estamos fazendo as mudas. Fazendo a reprodução vegetativa.

E, como não havia tempo, a venda então foi adiada para o ano que vem?
Sim, poderão começar a florescer em janeiro, fevereiro.

Se Tabaré Vázquez não for eleito e a oposição ganhar, podem mudar todo programa e anular a lei?
A oposição é meio trapaceira.

Por quê?
Porque a própria oposição apresentou um projeto no qual permite que se tenha em casa até seis plantas de maconha. Então, se você autorizar que todo mundo tenha seis plantas de maconha, adeus.

Então
Acho que a oposição daria outra forma, tiraria do Estado. Tiraria do Estado, mas deixaria a porta aberta para o autocultivo. O que seria uma garantia, de saber de onde sai, mas não se sabe aonde vai terminar. Nos Estados Unidos, o uso está se massificando.

O sr. conversou com o Obama sobre este tema?
Não, não conversei. Falei com outras pessoas.

E se Tabaré Vázquez ganhar, o programa seguirá tal como está?
Sempre haverá alguma modificação. Os programas mudam.

Há algum risco de que o Uruguai se converta em um país de turismo para os que querem consumir?
Não, não. Com o método que nós adotamos, nenhum estrangeiro pode consumir. Na realidade, o problema é ao contrário. Toda a droga que nos entra, entra pela fronteira. Vem em aviões pequenos. Todos nós sabemos que vem do coração da América. E é distribuída, e jogam pacotes.

Já levamos quase 80 anos reprimindo. E não conseguimos deter o avanço da droga. A via repressiva única demonstrou que é impotente em todos os lados. Como dizem, se você quer mudar, não pode continuar fazendo a mesma coisa. Tem que fazer outra coisa.

Nós não afirmamos ter a solução ideal. O que dizemos é que, por ser um país pequeno, institucionalizado, com forte presença do Estado em todas as partes, nós temos condição de fazer um experimento para encará-lo como enfermidade. Mas não estamos aqui para difundir o avanço do uso de drogas. Pelo contrário, queremos identificar os consumidores para poder avisar a tempo: "Veja o que está acontecendo com você".

Se eu tomar um ou dois copos de uísque por dia, talvez até não me faça bem, mas é suportável. Agora, se eu tomar uma garrafa todos os dias, você tem que me levar para o hospital. Com a droga acontece o mesmo. Se fumar um cigarro de maconha, é uma coisa. Se virar dependente, tenho que ter o indivíduo identificado porque é um caso hospitalar. Tenho que prestar auxílio. Mas, se eu o tiver no mundo clandestino, quando for prestar auxílio, desastres já aconteceram. Se multiplicaram os delitos, os roubos, já pode ter acontecido qualquer coisa.

Essa é a questão.

Acesse a transcrição completa da entrevista em português
Acesse a transcrição completa da entrevista em espanhol

A seguir, os vídeos da entrevista (rodam em smartphones e tablets):

1) Principais trechos da entrevista com José Mujica (10:45)

2) Apesar de viés imperialista, Brasil precisa de seus vizinhos (2:31)

3) Mercosul não está bem; Argentina tem outra visão, diz Mujica (1:14)

4) Burguesia paulista erra se fagocitar empresas de fora (1:42)

5) Brasil tem paciência estratégica com a Argentina, diz Mujica (1:20)

6) Precisamos ter discurso solidário sobre a dívida da Argentina, diz Mujica (2:02)

7) Sugeri a Lula que ele comandasse a Unasul, mas ele não quis, diz Mujica (2:10)

8) Afinidades entre os Brics são os problemas em comum, diz Mujica (0:35)

9) Uruguai quer refugiar 5 ou 6 presos de Guantánamo, diz Mujica (2:32)

10) Se Dilma perder, não acredito em cataclismo na política exterior (2:48)

11) Luis Suárez precisa de tratamento psiquiátrico, não sanções (2:12)

12) Venda de maconha atrasou pois florada será em janeiro (2:11)

13) Quem é José Mujica? (1:35)

14) Íntegra da entrevista com José Mujica (58 min.)

Acompanhe Fernando Rodrigues no Twitter e no Facebook


Endereço da página:

Links no texto: