Folha de S. Paulo


Leia a transcrição da entrevista de Luís Roberto Barroso à Folha e ao UOL - Parte 1

Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, participou do programa Poder e Política, programa da Folha e do UOL conduzido pelo jornalista Fernando Rodrigues. A gravação ocorreu no dia 18 de dezembro de 2013 no estúdio do Grupo Folha em Brasília.

Leia a transcrição da entrevista de Luís Roberto Barroso à Folha e ao UOL - Parte 2

http://www3.uol.com.br/module/playlist-videos/2013/luis-roberto-barro-no-poder-e-politica-1387572324785.js

Luís Roberto Barroso - 18.dez.2013

Narração de abertura: Luís Roberto Barroso, nascido em Vassouras, no Rio de Janeiro, tem 55 anos. É bacharel e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também é professor. Fez mestrado em Yale e foi pesquisador visitante em Harvard, ambas universidades nos Estados Unidos.

No início da carreira, Luís Roberto Barroso foi assessor jurídico do Estado do Rio de Janeiro, no primeiro governo de Leonel Brizola, na década de 80. Aos 27 anos, foi aprovado em primeiro lugar no concurso de procurador do Estado do Rio.

Barroso teve escritório de advocacia próprio, com sedes no Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. Advogou no Supremo Tribunal Federal em casos de grande repercussão, como o do reconhecimento do direito da união civil para casais homossexuais, o da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco, o do aborto de fetos anencéfalos e o da defesa do italiano Cesare Batisti, que era acusado de assassinato na Itália, mas conseguiu autorização para permanecer no Brasil.

Em maio de 2013, Luís Roberto Barroso foi indicado pela presidente Dilma Rousseff para uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal.

Folha/UOL: Olá internauta. Bem-vindo a mais um "Poder e Política - Entrevista". Este programa é uma realização do jornal "Folha de S. Paulo" e do portal UOL. A gravação é realizada no estúdio do Grupo Folha, em Brasília. O entrevistado desta edição do Poder e Política é o ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal.

Folha/UOL: Olá ministro, como vai? Tudo bem?
Luís Roberto Barroso: Tudo bem, é um prazer estar aqui com você.

Ministro, o sr. é o relator do chamado mensalão tucano. Quando o caso estará pronto para julgamento em plenário?
O mais rápido que o devido processo legal permitir.

Isso significa quando?
Acho que realisticamente em algum momento do próximo ano.

O sr. acha que é temerário dizer se é primeiro ou segundo semestre?
Acho, inclusive, porque não depende só de mim. O processo está em alegações finais, um deles.

O que significa isso, "em alegações finais"? Para um leigo entender.
É a ultima manifestação do acusado em um processo, depois de ouvida todas as testemunhas e produzidas todas as provas. E aí o processo vem concluso para mim, eu elaboro o meu voto, em seguida encaminho para o ministro Celso de Mello, que é o revisor. E, portanto, em rigor, vai depender de eu preparar o meu voto, do ministro Celso de Mello preparar o dele e da presidência pautar para julgar.

O prazo para as alegações finais serem apresentadas se encerra quando?
Agora no final do ano.

Neste ano de 2013? Ou seja, após o recesso de janeiro, o sr. recebe todos os dados e prepararia o seu voto?
Exatamente.

E o sr. estima que o seu voto, dado o tamanho do processo, tomará quanto do seu tempo?
Eu sou relativamente rápido. Portanto, tudo estando pronto na volta do recesso, eu imagino que em meados do primeiro semestre o meu voto esteja pronto.

Aí vai para o ministro Celso que é o revisor?
Que é o revisor.

Entendi. Daí o sr. acha exequível que ao longo do ano de 2014 possa estar pronto para ser pautado no plenário?
Certamente.

Tem chance de ficar para 2015, será?
Fernando, é ruim fazer prognóstico nessas coisas. A gente deve prever o que está sob o nosso controle. Isso não está inteiramente sob o meu controle, quer dizer, existe outros atores importantes e existem alguns componentes aleatórios, como a própria pauta do Supremo ao longo de 2014. De modo que tudo que eu posso dizer é que é muito provável que o meu voto esteja pronto no primeiro semestre de 2014.

Aí depende dos outros atores?
Depende dos outros atores. É.

O sr. já se familiarizou com o processo sendo relator, ou não?
Ainda não. Vou começar a estudá-lo no começo do ano e tratar com a seriedade que eu trato todos os processos e sem nenhuma paixão.

O sr. acha que esse caso guarda similitudes com o outro, também rumoroso, chamado mensalão, propriamente, que ocorreu no primeiro mandado do então presidente Lula?
Eu não tenho elementos para responder a essa pergunta. Talvez o pano de fundo seja um sistema eleitoral que, no geral, a meu ver, dá um papel excessivamente proeminente ao dinheiro, o que de certa forma faz com que o financiamento eleitoral esteja por trás de boa parte dos problemas brasileiros. Eu não estou dizendo especificamente deste processo porque eu ainda não o estudei. Mas eu acho que essa é uma percepção difusa da sociedade. Há um problema grave no financiamento eleitoral no Brasil.

Sobre percepção difusa da sociedade, no meio político, costuma-se analisar com muita paixão esses dois casos chamados de mensalão. Às vezes a gente ouve a seguinte interpretação, sobretudo no Congresso: "Poxa vida, o Supremo já analisou e julgou o caso de um dos mensalões, mas o outro está demorando mais do que deveria". Essa percepção é correta?
Eu creio que não, mas eu estou chegando agora.

Exato.
De modo que, desde que eu recebi o processo do mensalão, os inquéritos associados ao mensalão, eu os toquei o mais rápido que pude e tenho certeza que o ministro Carlos Ayres [Britto], que me antecedeu, procedeu da mesma forma. O Supremo e eu pessoalmente, o Supremo é um espaço mais de racionalidade do que de paixões. O problema é que às vezes você se enreda um pouco na burocracia e às vezes, num devido processo legal, o sistema brasileiro é um sistema que às vezes favorece a demora, a procrastinação. Portanto, eu diria assim, em uma agenda para o futuro, ao lado da reforma eleitoral, todo mundo já colocou também a questão do sistema processual, do volume de recursos, da demora dos processos. O Brasil é uma democracia relativamente jovem. E vive um momento de um certo amadurecimento da consciência política e da consciência cívica. Quando isso acontece, as pessoas começam a perceber subitamente um conjunto de problemas que passavam despercebidos. Eu acho que esse é o momento que o Brasil vive. Uma percepção crítica do sistema político, do sistema judicial, do sistema tributário, do sistema federativo. Evidentemente as coisas têm um tempo razoável para serem consertadas.

A propósito disso, há uma discussão já há algum tempo no Congresso, que foi patrocinada até pelo ex-ministro [Antonio Cezar] Peluso, que ficou conhecida no Congresso como a PEC dos Recursos, que visaria a reduzir as instâncias recursais do sistema judiciário brasileiro. Há quem considera que isso feriria uma cláusula pétrea da Constituição, que ninguém pode ser considerado culpado em definitivo antes do trânsito e julgado e outros acham que não, que é possível sim que depois de duas instâncias de condenação iniciar o processo de punição daquele que foi considerado culpado. O sr. tem um juízo formado a respeito disso?
Tenho. Eu acho que talvez seja preciso fazer uma grande divisão entre o que seja matéria penal e o que seja matéria não penal. Eu não teria dúvida nenhuma em dizer que tudo o que seja matéria não penal, o devido processo legal e o acesso à justiça devem se realizar em dois graus de jurisdição. Portanto, como regra geral os processos devem acabar ou no Tribunal de Justiça ou no Tribunal Regional Federal.

Aí executa-se a pena?
Aí executa-se a decisão. Estou falando...

A decisão sem prejuízo de mais recursos?
É. Em matéria penal eu, talvez, tivesse uma visão ligeiramente mais flexível para, ao menos em certos casos, admitir uma instância a mais, pela gravidade. Mas era preciso que essa instância a mais operasse com uma certa celeridade. Eu sou a favor, filosoficamente, de um direito penal pequeno, mas sério e eficiente. Não sou a favor de penas exacerbadas, não sou a favor de criminalizações amplas, como eu acho que em alguns segmentos se faz no Brasil. Mas acho que o direito penal, que está muito desarmado no Brasil, ele tem que ser efetivo, porque o direito penal tem um papel muito importante que é o que nós chamamos de prevenção geral. As pessoas muitas vezes deixam de delinquir pela certeza de que se o fizerem vão sofrer uma consequência negativa.

E não pelo tamanho da pena que vão cumprir.
Não. Mas se o sistema não for capaz de fazer incidir essa consequência negativa as pessoas fazem um cálculo de custo beneficio ou risco proveito. Como o risco de ser apanhado é mínimo e o proveito é grande muitas vezes as pessoas fazem coisas erradas. De modo que o sistema penal precisa desempenhar esse papel que é, inclusive, um papel de proteção dos direitos fundamentais dos outros, porque na medida em que você desincentiva o crime você está protegendo aquele que seria lesado. Mas o sistema punitivo, no Brasil, está desarrumado, sobretudo na sua porta de entrada e na sua porta de saída. O sistema punitivo, ele começa na polícia, com um inquérito policial, vai ao Ministério Público para a denúncia, vai ao Judiciário para o julgamento e vai ao sistema penitenciário para a execução da pena. Eu acho que ao longo da Constituição de 1988, o Ministério Público viveu uma expansão importante, uma acensão institucional importante, e o Judiciário da mesma forma. Mas a polícia ficou extremamente negligenciada e eu acho que é uma percepção equivocada tratar a polícia como se fosse uma questão menor, ou como se fosse uma função menos digna e, portanto, você tem uma polícia pouco aparelhada, pouco treinada. Com uma polícia técnica com muitas deficiências e, portanto, o processo investigatório no Brasil é deficiente. O número de delitos efetivamente apurados pela polícia é muito baixo. E depois quando alguém entra no sistema pela denúncia do Ministério Público, o sistema penitenciário é tão degradante que, muitas vezes, os juízes ficam procurando qualquer filigrana jurídica para não mandar alguém para o sistema porque todos temos a convicção não apenas de que a pena que ele sofrerá será de violação da sua dignidade, como ele saíra muito pior do que entrou. Eu, por exemplo, atuo no Supremo, julgo muitos processos criminais. Boa parte desses processos envolve tráfico de maconha em quantidades não muito relevantes, mas o suficiente para serem caracterizadas como tráfico. Eu acho que é uma política pública discutível você entupir os presídios brasileiros com jovens pobres pegos com quantidades relativamente pequenas de maconha, porque quando eles saírem estarão muito piores do que quando entraram.

Nesse sentido do exemplo que o Estado pode dar a respeito da eficiência ao punir aquele que cometem delitos, recentemente tivemos um exemplo que foi a entrada na prisão de condenados no processo chamado mensalão, a ação penal 470. O senhor acha que o efeito pedagógico dessas prisões existe e é presente na sociedade? É importante?
Eu acho que existe certamente o efeito pedagógico. Evidentemente ninguém deve ser condenado para ser um efeito pedagógico. As pessoas devem ser condenadas se elas efetivamente tinham uma culpa.

Nesse caso.
Eu acho que o que a ação penal 470 teve de verdadeiramente singular foi superar um pouco esse caráter seletivo que historicamente caracterizou o direito penal brasileiro, que era um direito penal que, no geral, só incidia sobre pessoas pobres e muito mal defendidas. Portanto, houve uma certa mudança de paradigma. Houve um ponto fora da curva, que foi a frase que eu disse na minha sabatina e que me assombrou ao longo do semestre. E acho que o mensalão terá feito a diferença se ele não for o que ele de fato foi, um ponto fora da curva. Ou seja, se nós mudarmos a curva e tivermos um sistema punitivo que não seja exasperado, que não seja truculento, mas que seja igualitário. A desigualdade que existe na sociedade brasileira, ela se manifesta de forma muito nítida no sistema punitivo. A ação penal 470 foi, de certa forma, essa catarse que ela foi, porque aconteceu uma exceção. Pessoas bem postas na vida foram colhidas pelo direito penal. Evidentemente ninguém fica feliz em condenar ninguém. Eu pelo menos não fico. Mas fico feliz em ver o país dar um passo rumo a uma certa proclamação da República nessa área, que é uma igualdade geral entre as pessoas.

Essa sua expressão "ponto fora da curva", ela pode ser entendida sob dois aspectos. Primeiro porque atingiu a pessoas, como o senhor disse, bem postas na sociedade, com acesso a bons advogados e, segundo, também pelo fato de as punições serem altas para quem não colocou em risco, diretamente, a vida de ninguém. São esses dois aspectos?
É. Eu não gostaria de falar sobre as punições altas, porque elas foram de uma fase do julgamento em que eu não participei, de modo que eu me sinto muito à vontade, e acho que faz parte do meu papel como um agente público, como alguém que aceitou um cargo público, dar satisfações sobre o que fez. Mas eu não tenho a motivação de comentar o que os outros fizeram. Em algumas situações, quando me tocou votar, eu de fato fiz o comentário de ter achado aqui, ali, penas exacerbadas, mas no geral eu mantive as decisões e, ao contrário do que talvez se tenha divulgado, a minha percepção jurídica, do julgamento da ação penal 470 foi extremamente positiva. Eu acho que o Tribunal prestou um serviço importante ao país e acho que os dois protagonistas do julgamento, o relator que foi o ministro Joaquim Barbosa, e o revisor, que foi o ministro Ricardo Lewandowski, os dois tiveram desempenhos que merecem ser louvados e acho que eles ajudaram, de certa forma, a avançar o processo político brasileiro.

Para algumas pessoas parece haver uma certa assimetria no cumprimento das penas, no sentido de que foram 25, não é? Os condenados. E a execução das penas começou sem que todos tivessem sido enviados para o sistema penitenciário para cumprir as suas sentenças. Há um caso objetivo, que é o caso do ex-deputado Roberto Jefferson que ainda não está cumprindo -pelo menos hoje, no dia em que estamos fazendo essa entrevista aqui- parece que por problemas de saúde, há duvidas se ele poderia ser recepcionado nos locais onde poderia cumprir a pena. Mas há outro que, enfim, o ex-deputado José Genoino, que também tem problemas de saúde, e já foi executada a sua sentença. O sr. acha que esse tipo de execução penal aos pedaços foi a mais apropriada?
Olha, se eu achasse alguma coisa relevante sobre esse assunto eu diria internamente, e não publicamente. Essa é a minha resposta para a sua pergunta. E eu, sobretudo, tenho uma postura de não fazer juízos públicos sobre votos, ou posições dos meus colegas do Tribunal, o que eu acho, eu digo em plenário, na turma [de julgamento] e, eventualmente, digo pessoalmente. Mas não me passaria pela cabeça criticar um colega publicamente.

Do ponto de vista apenas, vamos dizer, objetivo ou operacional, os sentenciados do mensalão foram trazidos para Brasília, a capital da República, para iniciarem o cumprimento de suas penas. São de vários estados. Teria sido mais apropriado que cada um deles começasse a cumprir pena no seu Estado?
Eu vou te dar a mesma resposta anterior. Se você perguntar a minha opinião, quer dizer, eu tenho certeza que o presidente é uma pessoa bem-intencionada e fazendo o que acha certo. Se eu tiver alguma divergência em relação a isso eu manifestaria a ele e não aqui nesse ambiente.

Mas o sr., estou sentindo, tem alguma opinião a respeito.
Eu, antes de ser juiz, eu faço parte de uma geração que tinha opinião sobre tudo. A minha geração é a geração da segunda metade da década de 70 que é a primeira geração pós anos de chumbo, de reconstrução democrática do Brasil. De modo que eu sou acostumado a ter opinião sobre tudo. E até a minha posse, em 26 de junho, desse ano, eu era, sobretudo, um participante do debate público. Portanto, eu discuti de interrupção da gestação a casamento de homossexuais, nepotismo, reforma política, com toda a liberdade, e esse era o fascínio que eu tinha na minha vida, participar do debate público. Ser juiz envolve alguns deveres de alto contenção. Portanto, eu, hoje em dia, para bem para mal, já não falo tudo o que penso. Mas o que posso te dizer, a propósito do presidente do Supremo, e sem mandato para defendê-lo, é que eu o considero um homem íntegro que está fazendo o melhor que ele acha que deve fazer na perspectiva dele. Talvez outra pessoa estivesse conduzindo de maneira diferente, mas essa é uma competência dele e, portanto, eu não acharia própria criticá-la.

O sr. mencionou casos rumorosos dos quais o sr. tomou partido, até participou como advogado. Me lembro do caso de Cesare Battisti, foi um deles. O senhor foi advogado do italiano que acabou conseguindo permanecer no Brasil. Agora outro caso rumoroso, um vazamento grande de informações no plano internacional por Edward Snowden, que era funcionário, enfim, que prestava serviços para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Uma discussão se ele poderia ser aceito pedindo asilo ao Brasil. O sr. vê similitudes no caso com o Battisti? Olhando assim esse caso, o que acha dele?
Eu não vejo nenhum tipo de similitude, salvo eventualmente um pedido de asilo ou de refúgio. O Cesare Battisti era um ex-militante da extrema esquerda italiana que se refugiou no Brasil. Na verdade ele fugiu para o Brasil e depois ele obteve refúgio do governo brasileiro, em uma decisão na época do ministro Tarso Genro. Uma decisão que foi escrita com muita habilidade. Mas que, em última análise, questionou, e com razão, o processo no qual ele foi condenado, na Itália, à pena de prisão perpetua. O interessante é que diversos outros militantes da esquerda italiana e das brigadas vermelhas mesmo já haviam se refugiado no Brasil e o Supremo tinha negado a extradição. O Cesare, que era o menos importante nas organizações de esquerda do que os outros, foi colhido um pouco pela história, por um momento italiano. O Silvio Berlusconi transformou em um símbolo de acerto de conta com o passado. Transformou aquilo em uma questão de Estado italiano e a República italiana se mobilizou e fez muita pressão política nesse caso. O caso era relativamente simples. Ele só foi potencializado por essa decisão política da Itália. A lei claramente dizia "o refúgio extingue o processo de extradição". O Supremo anulou um ato de refúgio, que é uma decisão incomum, e posteriormente se discutia se a decisão do Supremo meramente autoriza a extradição ou se ela impõe ao presidente da República que a cumpra. Também era uma questão bem equacionada na doutrina. O caso Cesare Battisti era um caso juridicamente fácil. Ele se tornou politicamente difícil. Juridicamente ele era fácil. Não acho que haja muito proveito em a gente reinvestir tempo e energia nisso. O caso do Snowden é diferente porque ele era um servidor do governo americano, salvo engano meu, ele é acusado de traição ou alguma imputação grave e, portanto, o único traço em comum que teria com o caso do Cesare Battisti é que a decisão de aceitar um estrangeiro no país é uma decisão política de governo. De modo que tal como valeu para o Cesare valeria para esse cidadão. Mas as circunstâncias são muito diferentes, até porque os perigos do mundo já não são mais o comunismo que se expandia, e sim a invasão de privacidade e, às vezes, de soberania via internet. Mas não vejo um real paralelo nesses casos não. Mas se o Brasil desse asilo a ele e eu ainda fosse advogado eu o defenderia também.

Ah é? O sr. simpatiza com a causa?
Não, eu simpatizo com a defesa.

Só para encerrar esse assunto. No caso do mensalão, da ação penal 470, os embargos infringentes devem ser apreciados no ano que vem ou o sr. acha que podem até se estender mais para frente?
Não. Para o meu gosto teriam sido apreciados esse ano ainda. É porque eu acho que processualmente não havia tempo. Eu votei, como você bem sabe, pelo cabimento dos embargos infringentes porque acho isso, estou absolutamente convencido de que aquela era a solução técnica adequada. E acho isso, Fernando, por duas razões fáceis de demonstrar. A primeira, o regimento interno no Supremo previa expressamente os embargos infringentes nesse caso. É verdade que há uma lei posterior que não previu os embargos infringentes. Portanto, haveria uma dúvida se a lei posterior teria revogado ou não esses embargos infringentes do regimento. Mas a verdade é que o Supremo emendou o regimento muitas vezes e nunca tirou os embargos infringentes. Inúmeras decisões do próprio Supremo faziam referência a esse dispositivo do regimento, de modo que o Supremo sinalizava claramente que entendia que ele não tinha sido revogado. A isto se somou o fato de que, em 1998, o presidente Fernando Henrique [Cardoso] mandou uma mensagem com um projeto de lei para o Congresso para acabar com os embargos infringentes no Supremo e o Congresso, em um voto devidamente justificado, disse "não, nós queremos manter os embargos infringentes", de modo que o Executivo achava que eles subsistiam, tanto que mandou um projeto para revogá-los. O Legislativo achava que existiam, tanto que não quis revogar, e o Supremo tinha diversas decisões se referindo a embargos infringentes. De modo que, entrando no julgamento sem nenhum clima de paixão, produzindo uma decisão puramente técnica, eu acho que os embargos infringentes cabiam e acho que o Supremo faria mal se, na reta final de um julgamento emblemático como este, tivesse produzido uma decisão casuísta para acelerá-lo sob pressão da mídia e sob pressão da opinião pública. Sofri o diabo por achar isso. Porém, a gente na vida deve fazer o que é certo e eu acho que isso era o que é certo.

E com relação à expectativa de finalização desse caso o sr. acredita que é lícito supor que, ao longo de 2014, isso seja liquidado?
Eu penso que sim.

O que impediria disso terminar em 2014?
Eu acho que todo mundo quer terminar. Eu tenho certeza que o relator, ministro Luiz Fux, também quer trazer a julgamento, que o presidente quer trazer a julgamento. O país precisa virar esta página. Precisamos ter uma agenda nova, uma agenda construtiva e acho que essa é uma agenda de quem está olhando para trás.

Esse julgamento teve uma cobertura intensa dos meios de comunicação, a população ficou sabendo tudo que se passava e em dado momento, ali em uma sessão, o sr. disse que não julgava para a multidão. Aí nessa sessão o ministro Marco Aurélio acabou o chamando de novato. Como foi esse episódio, como o sr. se sentiu nesse dia?
O ministro Marco Aurélio é meu amigo, de longa data. Acho que escapou ali. Eu não vi nenhuma maldade. Continuamos amigos. Eu acho que o Supremo tem, dentre outras coisas, um papel pedagógico e um papel pedagógico, para a sociedade, significa demonstrar que as pessoas podem divergir de uma maneira civilizada e devem divergir sempre com o foco no argumento e não na pessoa. Este é um salto civilizatório que o Brasil precisa dar. Quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, não é meu adversário. É meu parceiro na construção de um mundo plural. Portanto, argumentar não é desqualificar a outra pessoa. Argumentar é não perder a cabeça e continuar discutindo o argumento. O meu argumento central era: nós julgamos pessoas e ninguém deve julgar para agradar à multidão. Nem julgar para agradar à opinião publica. Em uma democracia todo o poder é representativo, inclusive o que os juízes exercem. Os juízes não são eleitos, mas os juízes também atuam em nome da sociedade e no interesse da sociedade, portanto devem satisfações à sociedade, de modo que a opinião pública não é indiferente, mas o meu papel e o meu dever é o de interpretar a Constituição e as leis. Este é o meu papel constitucional e esse é o interesse público. De modo que, se a correta interpretação da Constituição e das leis não corresponder à vontade da multidão, da opinião pública, ou da vontade da imprensa, eu devo fazer o que é certo contra todas essas vontades somadas. É um pouco como um autor americano exemplifica. O sujeito vai em uma festa de carro e aí ele entrega a chave para um amigo e diz: "Se eu tiver bebido demais, você não me devolve a chave, você não me deixe sair dirigindo". O que significa isso? É isso que é a Constituição em um tribunal constitucional. O povo diz ao tribunal constitucional "se eu me perder em paixões desordenadas você, por favor, continue a ser a minha razão pública". Portanto, passado o momento de exasperação no julgamento dos embargos infringentes, quase todas as pessoas olhando para trás e com serenidade vão reconhecer ue de fato cabiam os embargos infringentes. É pena que coubessem, mas cabiam. E foi bom que o Supremo tenha preservado a legalidade. Portanto eu acho que nós existimos para preservar a razão quando as pessoas ameaçam se perder em paixões.

Ministro, o Supremo tem se dedicado com muita frequência em todas as quintas-feiras, em tempos recentes, a julgar, analisar casos, ações penais envolvendo políticos que tenham o chamado foro privilegiado. É necessário modificar essa regra para liberar um pouco mais o Supremo para julgar outros temas?
É preciso modificar esta regra para liberar o Supremo e também por outras razões.

Quais?
Eu acho que esse foro por prerrogativa de função é um resquício não republicano da Constituição brasileira. É um resquício aristocrático de que algumas pessoas são diferentes das outras. Eu acho que só deveriam foro por prerrogativa de função pouquíssimas autoridades: o presidente da República, o vice-presidente da República, os chefes de poder, penso que os ministros do Supremo para não serem julgados por um tribunal inferior, se esse fosse o caso. Mas fora isso, a minha proposta é, de longa data antes de entrar no Supremo, uma emenda constitucional pela qual se suprimiria o foro por prerrogativa de função da maior parte dessas autoridades e se criariam na Justiça Federal de Brasília duas varas. Uma para julgar as ações penais e outra para julgar as ações de improbidade contra essas autoridades que hoje têm foro por prerrogativa de função. Por que em Brasília? Porque a autoridade pública também precisa de um grau mínimo de proteção institucional e seria muito ruim se ela estivesse sujeita a responder uma ação em Campo Grande, ou uma ação no Oiapoque, outra ação no Recife. Então para evitar essa dispersão que o procurador da República de Goiânia, e o procurador da República de Curitiba... Então você concentra em uma vara, mas de primeiro grau, essa vara conduziria a instituição, teria um juiz titular para cada uma, escolhido pelo Supremo e da decisão de cada uma dessas varas caberia recurso para o Supremo, de modo que o Supremo continuaria dando a última palavra e sairia desse fronte inóspito, que ele tem dificuldade de fazer, de conduzir o processo, ouvir testemunha, fazer perícia, que atravanca a agenda do Supremo.

Essa sua proposta, se adotada, mais ou menos com o trâmite que existe atualmente nos levaria a crer que, no caso da ação penal 470, estaria chegando na fase agora de recursos ao Supremo Tribunal Federal. É isso?
Possivelmente ela estaria mais adiantada do que isso, porque o recebimento de uma denúncia em um caso normal é feita monocraticamente pelo juiz, dias depois de o Ministério Público tê-la oferecido. No Supremo é um processo muito mais complexo, porque tem um relator, que é obrigado a levar a plenário, onze pessoas se manifestam.

Mas ainda assim, certamente, as penas não estariam sendo cumpridas ainda, nesse caso.
Provavelmente já estariam, porque o mensalão, a denúncia, se eu não me engano, é de 2007. Um típico processo penal, ainda mais com um rito abreviado, que seria vara especializada e Supremo, no normal da vida eu não creio que você precisasse de mais do que dois anos para conduzir um processo desse.

A minha pergunta foi no seguinte sentido: embora desafogasse o Supremo, esse sistema, será que ele não tornaria mais lento ainda o processo para autoridades que fossem processadas?
Não. Eu acho exatamente o contrário. Tudo no Supremo é mais lento porque, sobretudo se for ao plenário, envolve vaga no plenário, que tem uma fila imensa, e onze cabeças ao invés de uma. Portanto, eu não penso assim não. Penso que seria mais rápido, além de ser mais republicano. Agora, a ação penal 470, ela foi atípica. Você normalmente não tem ações penais envolvendo pessoas com foro, 40 pessoas. Portanto, ali, tudo foi diferente. Inclusive, acho que essa é uma observação importante de se fazer em uma perspectiva política do julgamento que é um pouco a espectativa que eu tenho. Eu falei um pouco antes assim. A história vai mudando patamares e mudando paradigmas e coisa que antes eram impensáveis, ou coisas que antes eram aceitáveis, elas passam a ser pensadas ou deixam de ser aceitas. Vou te dar um exemplo, uniões homoafetivas. Quando eu propus a ação há uns oito anos atrás, dez anos atrás, ninguém imaginava que a sociedade brasileira fosse evoluir para aceitar com naturalidade primeiro as uniões homoafetivas e hoje em dia o casamento de pessoas do mesmo sexo. Em menos de uma década nós tivemos uma transformação profunda no modo como esse fenômeno era compreendido. No caso do nepotismo, o nepotismo, sobretudo no Judiciário, mas em geral a nomeação de parentes em cargos de comissão é uma tradição brasileira de 500 anos e quando um desembargador era nomeado, tradicionalmente, a primeira coisa que ele fazia era nomear pessoas da sua estrita confiança, portanto, geralmente era mulher, filho, sobrinho, para cargos em comissão. Isso foi no Brasil desde sempre. Um dia, em meados da década de 2000 alguém, o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] finalmente resolver questionar isso, os tribunais estaduais, sobretudo, reagiram e aí foi-se ao Supremo, eu mesmo fui advogado da AMB [Associação dos Magistrados do Brasil] e aí se declarou, talvez tenha sido o único país do mundo em que precisado que o Supremo Tribunal Federal declarasse que não é possível empregar a parentada em cargos públicos de livre nomeação. Então uma percepção que sempre, um fenômeno que sempre foi tolerado, um dia muda a percepção e ele deixa de ser aceito. Em relação ao financiamento eleitoral, e o que desaguou na ação penal 470, e essa é a minha visão política geral, ali aconteceram coisas que fizeram parte da história brasileira, da história republicana brasileira tradicional. Circulação de dinheiro para obter apoios políticos, circulação de dinheiro para financiamento eleitoral. Eu acho que isso fazia parte de uma cultua leniente. E um dia, por uma porção de razões que agora não é o caso discutir, essa percepção mudou. O que era aceitável passou a não ser mais. Eu cresci com a cultura de que isso não é corrupção porque era dinheiro pro partido. Isso não era corrupção porque era dinheiro para o financiamento eleitoral. Eu cansei de ver, isso em diferentes governos, como um mero observador externo. Houve uma mudança qualitativa, uma mudança de paradigma. E o que era antes aceitável, subitamente passou a ser objeto de grande repulsa. Quem estava atravessando a rua nessa hora foi atropelado pelo trem da história. É como eu vejo.


Endereço da página:

Links no texto: