Folha de S. Paulo


Comunidades descendentes de escravos buscam regularizar suas terras no RS

"Eu falei para a minha filha que você não iria me reconhecer... Porque esperaria uma mulher negra, né?", diz Maria Joaquina da Conceição, 75.

De pele e olhos claros e cabelos vermelhos, "Quina", como é chamada entre os familiares, carrega a negritude na genética e nas memórias.

Descendente de escravos, Joaquina levou a reportagem ao quilombo Costa da Lagoa, no município de Capivari do Sul, 80 km de Porto Alegre (RS). O território possui certificação da Fundação Cultural Palmares desde 2006 e abriu processo de regularização fundiária no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 2011.

O quilombo ainda não conseguiu a titulação, último passo do processo, mas o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da terra já foi publicado. Nele, a pesquisa de antropólogos do Incra atesta que a identidade étnica do local não é apenas rememorada, mas "vivenciada e preservada nas relações de compadrio, parentesco e reciprocidade".

O relógio marcava 14h e o sol forte anunciava a proximidade do verão. Idosos, adultos e crianças se abrigavam na sombra das centenárias figueiras para contar a história da comunidade.

Cerca de 15 famílias mantêm relações com o Costa da Lagoa. Nem todas moram ali –a vida no quilombo não é sustentável e, por isso, a maioria dos quilombolas busca emprego no cultivo do arroz.

Ainda assim, estão sempre reunidos. Descendentes de três famílias que acabaram casando entre si (os Conceição, os Bernardes e os Oliveira) dividem origem e práticas.

Os quilombolas relatam que a decisão de regularizar o território no Incra tomou corpo quando alguns lotes de terra começaram a ser vendidos para pessoas de fora.

Dizem que a terra quilombola não pode ser vendida e que é preciso preservar o espaço de seus tataravós.

Segundo a pesquisa do Incra, a chegada dos negros no quilombo remonta há, pelo menos, 140 anos.

Uma das hipóteses é de que a ocupação tenha se dado a partir da herança de um senhor de terras, que deixou a região para a escrava Delfina Boeira da Conceição, liberta no batismo.

Sobrinha-neta de Delfina, ou "Dedê", Joaquina conta que a origem da terra nunca foi objeto de discussão entre os habitantes e que as raízes só foram descobertas com a abertura do processo no Incra. "Na nossa cabeça, era nosso e pronto. Os mais velhos morreram, vieram os filhos, os netos É a nossa terra", diz.

COTIDIANO QUILOMBOLA

Era na lagoa que dá nome ao quilombo que, no início do século passado, as mulheres lavavam roupas para garantir o sustento.

Em 1941, a lagoa inundou, causando uma grande enchente no território. Em meio a esse cenário, Quina nascia em uma das casas.

Sua mãe e sua avó atuavam como parteiras. Ela ainda guarda a espiriteira da avó Serafina, utilizada para esterilizar a tesoura com a qual cortava o cordão umbilical dos recém-nascidos.

Entre as práticas passadas pelas gerações, estava a oferenda dos bebês para a lua.

"Dizia-se 'lua, luar, pega essa criança e ajuda a criar'. Também colocava-se uma roupinha da criança numa árvore cheia de espinhos para a bruxa não pegar", conta.

Joaquina relata, ainda, que não havia médicos para atender a comunidade e que, assim, "era só na base do chá". "Quando o adolescente era muito magrinho, matavam uma coruja e faziam um caldo. Diziam que tinha muitos ingredientes que deixavam a criança forte."

De acordo com ela, dinheiro não existia. Os fazendeiros entregavam como pagamento uma ficha que só podia ser trocada em um armazém específico na cidade de Palmares. "[As mães] traziam a comida na cabeça e a gente acompanhava. Eram umas três horas de caminhada."

O Costa da Lagoa é apenas um dos 127 territórios quilombolas reconhecidos pela Fundação Palmares no Rio Grande do Sul. Somente 4, entretanto, já foram titulados pelo Incra. Outros 92 buscam titulação, por meio de um longo processo de seis fases.

Apesar da concepção de que o Sul possui um arranjo cultural distinto do resto do país, em razão da colonização europeia, o Rio Grande do Sul é o sexto Estado do país com mais quilombos reconhecidos.

Segundo o último censo do IBGE (2010), das 10 cidades com mais praticantes da umbanda, 8 estão no Estado. Porto Alegre é o terceiro município do país com mais adeptos, quase 41 mil.

"Talvez a explicação para esta discrepância esteja mais na forma pela qual a história do Rio Grande do Sul é interpretada, que se choca com o processo histórico efetivo que aconteceu", afirma José Rivair Macedo, professor de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Segundo o especialista, todas as atividades no Estado contaram com mão de obra escrava, principalmente para a atuação nas estâncias [espaço rural destinado à criação de gado] e nas charqueadas [onde se produz o charque, carne típica da região].

O professor afirma que o mito do Sul europeizado tem a ver com os debates que aconteceram na primeira metade do século 20, como parte de um "projeto de branqueamento" da sociedade.

Segundo ele, faltou vontade dos intelectuais de pensar profundamente a questão. "É um mito que se retroalimenta o tempo inteiro e gera esses aparentes contrassensos."

QUILOMBOS URBANOS

Não é apenas no meio rural que se encontram os quilombos. Porto Alegre tem quatro comunidades quilombolas, entre elas a do Areal. Localizado em um dos bairros mais valorizados de Porto Alegre, o território sofreu com especulação imobiliária.

A telefonista Fabiane Xavier, 41, secretária da associação comunitária do Areal, diz que os moradores eram assediados para que vendessem suas casas.

A prefeitura, dona do terreno, publicou em 2015 uma lei que reconhece o território quilombola do Areal. A titulação é o próximo passo.

"O título de propriedade é importante porque resgata toda a história dos nossos antepassados e vai poder proporcionar acesso a várias políticas públicas", diz Fabiane.

Com o título, os moradores querem revitalizar a fachada secular do casarão que é símbolo da comunidade.

Junto ao Pelourinho e ao Largo Zumbi dos Palmares, o Areal era um dos pontos de interesse do projeto "Territórios Negros". Alunos da rede municipal eram levados de ônibus para percorrer um roteiro que contava a história negra da cidade.

O programa foi criado em 2008 e suspenso em março deste ano. A prefeitura de Nelson Marchezan Jr. (PSDB) afirma que a suspensão se deve à situação financeira do município e à passagem do projeto para a Secretaria de Educação.

Segundo a secretaria, a retomada da iniciativa é estipulada para março de 2018, com "nova roupagem" e "ferramentas de inovação".

REGRAS PARA DEMARCAÇÃO

Ficou para 2018 o julgamento no STF de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que pode alterar a regularização das terras quilombolas. A ação foi ajuizada em 2004 pelo PFL (hoje DEM).

A discussão foi interrompida em novembro, por pedido de vista do ministro Edson Fachin.

A ADI 3.239 alega a inconstitucionalidade do decreto nº 4.887, assinado em 2003 pelo ex-presidente Lula. A ação argumenta que a regulamentação das terras deve ser definida pelo Legislativo e que não cabe ao poder público desapropriar áreas privadas.

O texto também questiona o critério de autodeclaração dos quilombos. Em novembro, o ministro Dias Toffoli votou pela procedência parcial da ADI. Ele reconheceu a tese do marco temporal, que garante somente a titulação das terras que já estavam ocupadas por remanescentes de quilombos em 1988, ano da Constituição. Toffoli ressaltou que também devem ser considerados quilombolas os territórios que não estivessem ocupados em função de atos ilícitos de terceiros.

O procurador da República Leandro Mitidieri afirma que o receio é que o julgamento crie as chamadas "condicionantes".

Ele ressalta que o reconhecimento da tese do marco temporal estabelece a necessidade de comprovação da expulsão dos povos. "É mais uma dificuldade num processo extremamente difícil."

Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Nilson Leitão (PSDB) se diz favorável ao marco temporal e afirma que a situação atual traz insegurança.

"O que está se discutindo é uma questão jurídica, em relação, inclusive, ao direito à propriedade", diz. "Muita gente se autodenominou indígena, quilombola, e de fato não são. Tem muito índio nascendo no Brasil com 40 anos de idade, olhos verdes e cabelo loiro."


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