Folha de S. Paulo


depoimento

Na invasão da PUC, subi um muro e cruzei o quarteirão pelo alto

Eu sei, voar é com os pássaros. Mas, movido por repentina força antigravitacional, de repente me vi flutuando sobre os telhados da cidade, com a leveza de um Gino Meneghetti. Meu precoce parkour de 40 anos atrás tinha boa motivação: atrás de mim ouvia ainda berros de policiais, estudantes, professores e funcionários, em meio ao fragor de bombas que violentavam o campus da PUC de São Paulo.

Estávamos concentrados na rua em frente, num ato público em repúdio às ações da ditadura para impedir a realização de um encontro preparatório à reorganização da UNE.

Éramos delegados eleitos em faculdades de todo o país, e naquele mesmo dia em que virei pássaro, 22 de setembro de 1977, decidimos fazer o encontro de qualquer maneira. Chamamos uma assembleia da PUC que desviou a vigilância dos policiais infiltrados, enquanto nós delegados nos reunimos a poucos metros dali, numa sala de aula.

Para a noite foi marcado o ato que tornaria públicas as deliberações e afirmaria o repúdio contra a repressão que tentara nos imobilizar.

Derrotados na tentativa de impedir aquela reunião de delegados que afinal se fez, os facínoras que mandavam no Estado decidiram a retaliação. O ato pacífico foi repentinamente atacado com cassetetes e bombas. Incrédulos, os estudantes foram recuando para dentro do prédio, que se elevava em rampas por andares de salas de aula.

No primeiro lance das rampas, porém, me dei conta da ratoeira em que estávamos, e pela amurada observei que a rua de trás da universidade ainda não estava cercada. Com dois colegas a meu lado, zarpei por um beco que terminava num muro. A polícia já cercava aquele lado do campus.

Sem melhor opção subimos o muro e cruzamos o quarteirão pelo alto, tentando abrigo em algum quintal, até sermos acolhidos numa casa, onde ficamos por horas.

Notório pior aluno de educação física do colégio, de onde me veio a inspiração para flutuar naquele balé pelos tetos da cidade? Não foi só a balbúrdia que escutava atrás de mim mas também a ciência de quem estava por trás dela, o sinistro secretário da Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, que jurara que não realizaríamos o encontro.

Para você que, 40 anos depois, nunca ouviu falar nele, explico que era um ser hediondo e violento, contra qualquer tipo de liberdade.

Meio como esse outro milico que anda à solta, capitão Bolsonaro. Aquela selvageria foi obra de um regime mas também de pessoas, escórias como Erasmo Dias: uma espécie de Bolsonaro –mas armado. E ainda tem gente que quer isso de volta.

JOSIMAR MELO, conhecido na USP como "Bicho", foi dirigente do DCE-Livre da universidade e candidato a presidente da UNE. Detido e fichado pelo Dops, era dos líderes mais visados pela polícia na época da invasão da PUC.


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