Folha de S. Paulo


Esquerda cresceu onde radicalizou sua pauta, afirma Vladimir Safatle

Bruno Poletti/Folhapress
Vladimir Safatle,professor de filosofia da USP e colunista da Folha
Vladimir Safatle,professor de filosofia da USP e colunista da Folha

A história recente do Brasil representa o colapso do último grande modelo de conciliação da democracia liberal. A tese é defendida por Vladimir Safatle em seu novo livro, "Só Mais um Esforço" (selo Três Estrelas, do Grupo Folha).

Para o professor de filosofia da USP, a derrocada petista atesta a falência de um sistema político de conciliação de setores antagônicos e ajustes graduais, no qual o conformismo tomou o lugar do conflito.

Reverter o esgotamento em que a esquerda se encontra, analisa o colunista da Folha, demandará a adoção de uma pauta radical que inclua o confisco dos aparelhos produtivos e o esvaziamento do Legislativo e do Executivo em prol da democracia direta, ancorada em assembleias populares deliberativas.

Folha - No início do século 21, partidos de esquerda estavam no poder em vários países da América Latina, com resultados exitosos. Essa tendência parece estar agora em declínio. O que deu errado?

Vladimir Safatle - Essas experiências foram vítimas de resistências de toda ordem, mas também de suas contradições internas. Elas foram o último capítulo da história da esquerda no século 20, ou seja, estavam ligadas a uma dinâmica de lutas sociais e formas de governo que marcou principalmente a segunda metade do século 20 e que não podem mais nos servir de orientação.

Deste momento histórico, elas herdaram uma polaridade política: ou operar nos marcos da governabilidade próprios à democracia liberal, com suas exigências de conciliação e cooptação, ou optar pelo fortalecimento de dinâmicas personalistas e bonapartistas. O Brasil é um bom exemplo do primeiro caso, enquanto a Venezuela é um paradigma para o segundo. Nos dois casos, caminhou-se rapidamente para a transformação das práticas de governo em uma gestão da paralisia social.

Esses dois modelos permitiram uma capitalização das classes mais desfavorecidas, mas foram ineficientes para criar uma sociedade igualitária. Pois, para tanto, seria necessário um nível de conflito de classe, aliado à consolidação de alternativas concretas ao modelo capitalista de produção, com seu monopolismo, seja privado ou estatal, que não existiu em nenhum dos dois modelos.

No máximo, esses modelos foram tentativas de ressurreição do capitalismo de Estado e padeceram de seus mesmos limites. No entanto, vale a pena lembrar que há, ao menos, dois casos que destoam pelo seu caráter relativamente bem-sucedido: Bolívia e Uruguai. Eles mereceriam uma discussão mais consistente.

O ocaso petista é resultado de erros do partido ou, num plano mais geral, do esgotamento desse modelo político?

Há um conjunto de fatores que devem ser levados em conta e procuro sugerir uma interpretação no meu livro. Do ponto de vista econômico, era claro que o lulismo chegaria rápido ao teto. Não por alguma forma de "estatismo" e "inchaço do Estado" como economistas neoliberais pagos regiamente pelo sistema financeiro gostam de repetir.

O lulismo chegou ao teto porque os ganhos das classes mais baixas foram rapidamente corroídos pela pressão produzida pela desigualdade. As classes mais altas garantiram suas rendas e puxaram os preços para cima.

Quando a população percebeu que seus ganhos estavam sendo corroídos, e isso se dá por volta de 2013, a sensibilidade para problemas de corrupção ficou insustentável.

Preso por uma dinâmica política completamente integrada à gestão de maiorias parlamentares, o PT esqueceu-se de a que política é um jogo de forças e que o respeito à "institucionalidade democrática" no Brasil duraria apenas enquanto a esquerda parecesse ter unidade e força popular.

O senhor defende uma pauta radical para a esquerda: democracia direta, confisco de aparelhos produtivos, restrição do direito à propriedade privada. Tal plataforma teria chance de vitória nas eleições?

A esquerda cresceu onde radicalizou suas posições. Isso ocorreu recentemente no Reino Unido, na França (onde a esquerda mais radical quase passou ao segundo turno das eleições) e na Espanha. A política foi para os extremos -e mesmo em um país como o Brasil isto está claro. O problema é que apenas um dos extremos parece não ter medo de dizer seu nome.

Mas eu lembraria que, depois de abandonar a noção de revolução como orientação para as ações políticas, a esquerda renunciou até mesmo ao horizonte de reformas.

Por exemplo, nos governo petistas nunca houve uma discussão honesta a respeito de tributação de grandes fortunas, de lucros e dividendos, de limitação do tempo de trabalho (de 44 para 40 horas), de auditoria da dívida pública, ou seja, tópicos classicamente reformistas.

Sugiro que a esquerda pare de tentar impedir a autodestruição do capitalismo e lute por uma sociedade na qual a atividade humana não esteja submetida à condição de trabalho produtor de valor, na qual a propriedade não seja mais a representação única da liberdade e na qual "austeridade" é algo que se cobra das elites, não do povo.

Como avalia as críticas de que a democracia direta, com sua estrutura de assembleias populares, poderia levar o país ao caos e à tirania?

Como uma piada de mau gosto. No fundo, os que dizem isso sonham com uma democracia sem o povo. A equação que eles defendem é: o aumento da participação popular nos processos de deliberação e gestão equivale a um risco à democracia. O que dizer diante de uma contradição "in adjecto" como essa? Esse é o velho argumento do século 19 contra o advento das massas ao processo político.

Eu lembraria inicialmente como não houve situação alguma na qual a democracia representativa realmente impediu o autoritarismo, até porque ela tem seus próprios dispositivos de exceção e de suspensão da lei em situações de emergência, que hoje são a norma. A representação não garante nada, a não ser a limitação da capacidade de transformação dos conflitos sociais.

Segundo, não sei realmente porque "caos" seria um problema, nesse contexto. De fato, não necessitamos de mais alguma forma de sociedade de controle. Necessitamos de uma sociedade descontrolada, na qual as instâncias de decisão não são controladas nem pelo poder econômico nem pelos enquadres institucionais que tentam perpetuar configurações definidas de poder.

Seria bom se tivéssemos caos em política, ou seja, essa compreensão de que o poder pode vir de todos os lados, que as configurações podem entrar em contínua metamorfose, que os lugares se decompõem e se recompõem em velocidade infinita. No entanto, nunca vimos isso, ainda. O que não significa que ele não possa existir, apenas que deveríamos desconfiar do medo do caos e começar por perguntar se ele não é superestimado.

Da mesma forma que os políticos, a assembleia popular não poderia ser corrompida por interesses escusos?

Processos de democracia direta estão longe de serem simples, facilmente generalizáveis e eu seria o último a fazer uma defesa meramente abstrata aqui. No entanto, eles exigirão uma imaginação política que apenas a confrontação com condições concretas e localizadas poderá produzir.

Uma experiência política não pode ser objeto de uma dedução transcendental. O que me impressiona é, ao contrário, como há uma legião que tenta nos dizer que toda forma de fortalecimento da força do demos só pode produzir catástrofes. No que se percebe que eles têm uma visão completamente a-histórica de dinâmicas políticas. O que não poderia ser diferente, já que no fundo, seu debate não é político, mas teológico.

Eles querem levar sociedades a acreditar na teologia da queda, do pecado original da vida social, saindo por aí a pregar seu evangelho da natureza humana hostil. Um pouco menos de teologia e um pouco mais de política seria bom aqui. O que sabemos do comportamento humano em uma sociedade mutilada não pode nos servir de horizonte para medir a real potencialidade de agência de sujeitos emancipados. A política só existe como aposta na força plástica das metamorfoses do humano.

O senhor diz que a representação política é hoje um arcaísmo. Seria possível abrir mão dos representantes, dos políticos?

Nós já abrimos mão há muito, apenas não percebemos isso. Em larga medida, votamos não em nossos "representantes", mas votamos simplesmente para barrar aqueles que não queremos em hipótese alguma. O vínculo à representação é, em larga medida, meramente negativo.

Por outro lado, representação é submissão dos modos de existência a uma gramática prévia que não pode ser mudada. Uma gramática de modos de ausência, já que representar algo é estar no lugar de uma ausência. Ou seja, representar é gerenciar uma distância e esta foi a democracia que até agora conseguimos produzir: um sistema de gestão de distâncias em relação ao poder.

Não é estranho que o ceticismo em relação à democracia acabe por crescer. Ele não é apenas uma forma de regressão, mas é também a expressão da consciência de que as promessas da democracia ainda não se realizaram -e melhor do que parar neste ponto é continuar a avançar.

Lula lidera as pesquisas para as eleições de 2018. Não é prematuro decretar o fim do lulismo, como faz no livro?

O esgotamento do lulismo não significa necessariamente que Lula deixará de consolidar maiorias eleitorais. Significa, na verdade, que seu ciclo histórico terminou, que seu modelo político conciliatório foi o último estágio da Nova República. Lula procurou repetir um modelo cujas dinâmicas fundamentais nos remete novamente a Vargas. Essa é uma tese que procuro desenvolver no livro.

No entanto, conhecemos várias situações nas quais ciclos históricos terminam e as sociedades procuram se reproduzir como se nada tivesse ocorrido, criando essa posição na qual o jogo parece continuar, mesmo se ninguém mais acredita realmente nele.

Uma situação como essa apenas demonstraria como a esquerda não consegue mais oferecer nada ao país, a não ser aquilo que ela já mostrou e que era muito mais frágil e precário do que muitos gostariam de acreditar. O destino do Brasil não é apenas a repetição de estratégias de curta duração ou a queda periódica em regimes oligárquicos que podem ser comandados ou por civis ou por militares.

Que perspectivas o senhor vê para o país?

Ao que tudo indica, há três possibilidades. A primeira é que nada ocorra e que assistamos à decomposição de um país comandado por uma classe política de criminosos contumazes e indiciados capazes de se preservar a despeito de tudo. Neste país em decomposição, nenhuma instituição funciona de forma minimamente normal.

Uma sociedade em tal grau de decomposição necessita de níveis ainda não vistos de violência estatal. Isto pode levar a um segundo cenário, ou seja, a um puro e simples golpe de estado. Vimos nos últimos dias como generais na ativa já tramam abertamente tal possibilidade.

Só Mais Um Esforço
Vladimir Safatle
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Por fim, há ainda a possibilidade de aqueles que lutam pela transformação do Brasil em uma sociedade igualitária, livre e solidária constituírem um corpo político e entrarem em constelação. Pois não é verdade que não haja mobilizações contra tais cenários terminais. Só nos últimos meses vimos uma greve geral de 35 milhões de pessoas.
No entanto, ainda não há campo algum que consiga constituir toda esta energia de revolta em uma força política capaz de agir em conjunto, a despeito da multiplicidade de suas vozes. Para isso, entre outras coisas, há de se deixar de uma vez por todas de desconfiar da força de transformação das ideias.

Dentre vários fracassos que se mostram atualmente no Brasil, há também o fracasso da classe intelectual, o que me concerne de forma mais próxima, e ao menos a esse respeito há coisas que podemos fazer.

SÓ MAIS UM ESFORÇO
AUTOR Vladimir Safatle
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 29,90 (144 págs.)


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