Folha de S. Paulo


Juízes da Mãos Limpas viraram atores políticos, diz historiador italiano

Giovanni Orsina
Full professor in Contemporary History at the Political Sciences Department, LUISS Guido Carli University of Rome. Deputy director of the LUISS School of Government, where he also directs the Masterâ??s Programme in European Studies. Foto: eupadra Giovanni Orsina ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Giovanni Orsina, professor da universidade LUISS-Guido Carli, em Roma

Era uma vez um país abalado por uma megaoperação contra a corrupção. Ela dizimou as principais lideranças partidárias, pegas em malfeitos, teve juízes e procuradores acusados de agir politicamente e abriu caminho a um líder que se dizia apolítico.

A descrição da Itália da Mãos Limpas em 1994 encaixa-se em vários dos cenários desenhados para o Brasil da Lava Jato em 2018. A despeito do abismo separando suas realidades, a crise de representatividade é comum.

Vinte e três anos depois de ser eleito, o ex-premiê Silvio Berlusconi ainda é influente, mas representa uma falência institucional que só poderia ter sido combatida se a solução em 1994 tivesse ocorrido dentro da política.

Essa é a opinião de um dos principais historiadores do fenômeno do berlusconismo, Giovanni Orsina, professor da universidade LUISS-Guido Carli, em Roma.

Ele evitou comparações, mas em suas colocações há grandes similaridades com o debate atual no Brasil.

"A lição que ficou da crise na Itália é uma muito difícil de ser ouvida: a política é uma atividade necessária", disse, por telefone, o autor de "O Berlusconismo na história da Itália" (2013, disponível em italiano e inglês).

Orsina, 50, critica aspectos "moralistas" de juízes da Operação Mãos Limpas, que varreu os partidos tradicionais de 1992 a 1994 e viu seu magistrado-símbolo, Antonio di Pietro, virar político.

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Giovanni Orsina, 50

Nascimento
Roma, em 1967

Formação
Doutor em história. Professor de história contemporânea, vice-diretor da Escola de Governo e diretor do mestrado em estudos europeus da LUISS-Guido Carli

Obras
"O Berlusconismo na história da Itália" (2013), "A República depois de Berlusconi" (2011), "Sem igreja nem classe" (1998), entre outros

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Para ele, Berlusconi era o que a sociedade queria: apolítico, empreendedor e rico —logo, "não precisaria roubar".

A história mostrou-o farsesca, até porque no seu primeiro mandato como primeiro-ministro até 1995 ele ajudou a desmontar a Mãos Limpas. Tornou-se a figura central no país, sendo premiê outras duas vezes (2001-6 e 2008-11), mas também encarna a caricatura do corrupto.

Ele está banido de cargos públicos até 2019, por corrupção, mas lidera o terceiro maior partido do país e quer disputar as eleições em 2018.

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Folha - Passados 25 anos, qual o legado da Mãos Limpas?
Giovanni Orsina - O efeito foi enorme. Mudou para sempre a política na Itália. Houve um processo muito intenso de busca por bodes expiatórios, enquanto os políticos só tinham responsabilidade política. A mesma sociedade tolerou aquelas práticas por muitos anos.

Quando o sr. fala em sociedade civil, está falando de uma ideia de elite?
No caso, é um instrumento retórico. A Itália dos anos 1980 era um mix de tudo isso, elite, classe média, operários. Como disse, em vez de a sociedade se responsabilizar também pela situação, os italianos resolveram colocar toda a culpa nos políticos.

Acharam que se você se livrasse de bodes expiatórios, tudo ficaria bem. Apoiaram a Mãos Limpas, só que nada foi plantado exceto a ideia de que a política é ruim, e que os magistrados eram mágicos.

Pediam a mudança, mas não aceitavam dar os instrumentos a quem poderia fazê-la. Acabou com o sistema.

O sr. descreve a Mãos Limpas como um evento político.
Sim. Claro, ela apurou coisas importantes, mas foi um evento político que gerou uma crise política.

O Judiciário agiu politicamente na Mãos Limpas?
Juízes e promotores viraram atores políticos, mas é muito difícil apontar se eles faziam isso por alguma agenda. Até porque a Mãos Limpas não era uma entidade única. Havia o grupo principal, de Milão, que não era homogêneo. E havia Roma, Palermo.

Até certo ponto, eu acho, alguns dos magistrados tinham sim uma agenda.

E entraram na política.
Claro, como no caso de Antonio di Pietro [o promotor principal da Mãos Limpas, que virou ministro do governo de centro-esquerda de Romano Prodi em 1996 e de 2006 a 2008]. Houve artigos incríveis escrito por ele e também por outros, nos quais era adotada uma retórica moralista. O indiciamento ético da classe política era moral, não judicial.

Tanto que ele apareceu em um programa de TV fazendo café da manhã, um verdadeiro herói do povo. Depois ele viria a fundar um partido, o Itália de Valores [em 1998], cujo nome diz tudo.

Paradoxalmente, esse clima de moralismo abriu caminho para Silvio Berlusconi.
Sim, mas isso é nosso olhar hoje. Em 1994, quando Berlusconi foi eleito, sua figura era a solução para a demanda por moralidade. Ele não era um político, e para a sociedade os políticos não eram mais necessários.

E há mais: a sociedade civil julgou que estava na hora de colocar um dos seus, o melhor dos seus integrantes, no poder. Ele nem precisaria roubar, pois era bilionário.

E encarnava o trabalho duro, o empreendedor, o "self-made man". Era uma solução brilhante. Num lance genial, ele tentou trazer a Mãos Limpas para o governo [em 1994], convidando Di Pietro para o ministério [que não aceitou e investigou Berlusconi]. Era o filho da revolução, só depois o chamaram de ilegítimo.

Mas permanece influente.
A Itália nunca ficou totalmente contra Berlusconi. Eu diria que apenas aqueles que eram contra ele já em 1994, estratos da elite e a esquerda, continuam seus adversários.

Ele está de volta, está fazendo política e vai influenciar nas eleições de 2018.

A Itália nunca se recuperou das Mãos Limpas. O sistema político ficou tão enfraquecido que mesmo um personagem como Berlusconi, acusado de tantas coisas, ainda é um grande ator.

A culpa é da sociedade então?
Ela quis a solução do grande gestor. Mas é importante lembrar que ele não foi eleito só por isso. A falta de alternativas era enorme. Ninguém queria um governo dos pós-comunistas, a esquerda.

O Brasil passa por uma situação que guarda muitas analogias com a Itália de 1992, 1994. Que lição poderia ser dada sobre tudo o que aconteceu?
Naturalmente não posso falar sobre o Brasil, que não conheço bem. Mas a lição que ficou da crise na Itália é uma muito difícil de ser ouvida: a política é uma atividade necessária, tem suas próprias regras e seu próprio tempo.

Políticos têm de ser bem pagos para fazer seu trabalho sem desvio, e se você não der os instrumentos, a política falhará. Se ela falha, o campo fica aberto e é povoado por todo tipo de personagem. A Itália não aprendeu a lição.

No Brasil, há uma discussão sobre adoção do parlamentarismo. Aqueles contrários citam o exemplo italiano, com grande instabilidade, como argumento. O que o sr. acha?
Os governos duravam menos de um ano em média, mas o corpo de governança era sempre o mesmo. Era substancialmente estável porque havia partidos e eleitorado fortes. Quando esses dois parâmetros despareceram no começo dos anos 90, o parlamentarismo virou um problema. Várias reformas constitucionais foram tentadas, mas sempre falharam. Assim, o parlamentarismo é parte do problema italiano.


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