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Há dúvidas sobre isenção da Justiça no Brasil, diz ex-ministra alemã

Paul Zinken/DPA
A jurista Herta Däubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça da Alemanha (1998-2002)
A jurista Herta Däubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça da Alemanha (1998-2002)

A jurista Herta Däubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça da Alemanha (1998-2002), afirmou em São Paulo que "há dúvidas cada vez maiores" sobre se o Judiciário brasileiro coloca o país na lista de lugares onde o Estado de Direito não é respeitado.

Em alusão à denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República contra o presidente Michel Temer, a política do SPD (Partido Social-Democrata, de centro-esquerda), disse que uma situação similar na Alemanha provocaria a imediata renúncia do presidente.

Em visita a SP para participar de uma série de conferências organizadas pela Fundação Friedrich Ebert sobre a relação entre Justiça e democracia, a ex-ministra defende que o Brasil deveria reformular o modo pelo qual os juízes do STF são escolhidos. Däubler-Gmelin sugere que os magistrados tenham mandatos com prazo determinado e que seus nomes sejam aprovados em votações na Câmara e no Senado por ao menos dois terços dos parlamentares.

Em entrevista à Folha na última quinta (10), ela falou também sobre a crise dos refugiados na Europa e criticou a escalada autoritária dos governos da Hungria e da Polônia.

Leia a seguir.

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Que relação a sra. acredita que a Justiça deve ter com a política?
É muito importante que a Justiça seja independente. Os governos e os que estão no poder não devem exercer influência sobre tribunais e juízes. E os juízes não devem se imiscuir em debates e questões políticas. Na Alemanha, se um juiz se pronunciar sobre algum debate político, ou sobre um caso que ele está tratando ou que o tribunal do qual ele faz parte pode vir a tratar, ele automaticamente será excluído do procedimento.

No Brasil, há quem questione que ministros do STF, por exemplo, deem entrevistas ou declarações à imprensa sobre casos. Como a sra. vê isso?
Seria inadmissível na Alemanha. Esses juízes não seriam declarados capazes de julgar os processos sobre os quais comentaram. Ainda mais se emitiram juízos em público. Juízes que atuam no Estado de Direito geralmente não se comportam assim. Outros juízes deveriam criticar, dizer que esse tipo de atitude não é correta, todo o público e a mídia diriam que isso é inaceitável.

Como coibir esse tipo de prática?
São necessárias várias medidas urgentes. Primeiro, os meios de comunicação têm de deixar bem claro que esse tipo de juiz não está se comportando como se estivesse em um Estado de Direito, fazendo justiça imparcial.

Em segundo lugar, as associações e organizações de classe também deveriam se manifestar, no sentido de que pré-julgamentos e parcialidade não cabem no Estado de Direito.

Além disso, países como o Brasil ratificaram uma série de acordos internacionais sobre o Estado de Direito e, por isso, o governo atual tem compromissos e obrigações de preservar o Estado de Direito.

Políticos investigados e processados no âmbito das investigações da operação Lava Jato, especialmente alguns ligados ao PT, fazem críticas ao que chamam de parcialidade da Justiça no Brasil. A senhora ouviu essas críticas? Qual a sua avaliação delas?
Viajo muito mundo afora, vejo o que ocorre com o sistema Judiciário na Rússia, por exemplo, e os abusos cometidos lá. Encontramos procedimentos incorretos em vários países.

Até agora, o Brasil não faz parte desse grupo de países. Mas as dúvidas sobre se o Brasil não deveria ser incluído no grupo de países que cometem esse tipo de infrações são cada vez maiores.

Um dos possíveis questionamentos à Justiça brasileira é sobre a maneira pela qual são escolhidos os juízes do STF, com a indicação presidencial e posterior sabatina no Senado, um modelo parecido ao dos EUA. Quais as vantagens e desvantagens desse modelo?
É uma opção da constituição brasileira, mas um sistema que os designasse por um determinado período em vez de por toda a vida teria vantagens.

Defendo que esses cargos tão importantes sejam eleitos pelas duas Casas parlamentares.

As vantagens de uma eleição em base ampla são óbvias. Com isso, assegura-se que os juízes não venham sempre de um mesmo grupo social, da elite, mas sim que todos tenham acesso a essa carreira. Além disso, nesse modelo todos os partidos políticos participem da eleição e possam influenciá-la. Ao limitar tempo de mandato e ampliar a base pela qual os juízes são escolhidos, conseguimos uma composição mais democrática.

Uma eleição desse tipo não poderia politizar o Judiciário?
Não. Se você estipular que precisa haver uma maioria de dois terços tanto da Câmara quanto do Senado para ser eleito, garante uma representação tão ampla que não haverá uma influência pessoal na escolha.

Alguns analistas afirmam que a democracia no mundo está em crise. A sra. concorda com essa afirmação?
Claro que há muita crítica sobre sistemas democráticos em vários países do mundo. Mas essa crítica tem diferentes níveis, é diferenciada.

As críticas que se expressam com relação à democracia no Brasil estão quase todas relacionadas ao comportamento partidário de juízes.

Na Alemanha, se houvesse acusação da Procuradoria-Geral contra o presidente, ele teria de deixar o cargo imediatamente. E ele o faria, certamente, sem demora. Você talvez se lembre do ex-presidente alemão Christian Wulff, que renunciou sob acusações [de corrupção e tráfico de influência, em 2012].

Também seria impossível na Alemanha que uma decisão do parlamento impedisse o prosseguimento da denúncia, como ocorreu no Brasil. Isso tem a ver com os princípios fundamentais da democracia. Os poderosos precisam respeitar a lei.

Na Europa, vemos governos que fazem escaladas autoritárias na Hungria e na Polônia, por exemplo. Como a UE deve atuar nesse sentido?
Tanto na Hungria quanto na Polônia, poderosos que estão no governo tentam usar o sistema jurídico a seu favor com a intenção de perpetuar-se no poder.

A União Europeia não pode aceitar esse tipo de atitude, porque a independência da Justiça é um dos pilares do Estado de Direito e deve ser defendida.

A Comissão Europeia já se pronunciou várias vezes contra os dois casos e iniciou procedimentos contra os governos desses dois países.

O Conselho Europeu também já se manifestou dando advertência aos dois países, criticando-os e exigindo correções.

A senhora é otimista com relação à democracia na Hungria e na Polônia? A União Europeia vai conseguir impedir uma escalada autoritária nesses países?
Na Polônia, podemos observar muito bem que a mídia, diferentemente da brasileira, não está do lado do governo. E a população também resiste e denuncia abusos de poder. Isso é bom.

Na Hungria, também temos meios de comunicação que mostram o que está acontecendo, os abusos do presidente Viktor Orbán e de seu governo. Tudo isso é bom e nos dá coragem.

Como a sra. vê a questão dos refugiados na Europa e como classifica as posições do governo alemão e da UE frente ao tema?
Há consenso entre os partidos no governo na Alemanha de que precisamos combater as causas dos movimentos migratórios. Mas não devemos, obviamente, combater os refugiados.

A vontade de ajudar da população alemã é enorme. Mesmo quando vemos nos meios de comunicação que a extrema direita é contrária aos refugiados. Não podemos nos esquecer de que grande parte da população alemã ajuda e quer continuar ajudando refugiados.

Na UE, o grande problema é que os países onde os refugiados mais chegam, casos como o da Grécia e o da Itália, não estão recebendo o apoio necessário do bloco. Isso precisa mudar rápido e o governo alemão está trabalhando nesse sentido junto à UE.

A senhora é favorável ao sistema de cotas de recebimento de refugiados por país-membro da UE, para uma distribuição mais equilibrada dos fluxos de imigrantes?
Esse sistema foi aprovado pela UE, mas não é respeitado por alguns países. O Tribunal de Justiça da UE determinou que esse sistema é lei e deve ser cumprido.

Mas não vem sendo cumprido.
Por isso devemos nos empenhar. Na Alemanha, todos os partidos, sejam do governo ou da oposição, de esquerda ou de direita, apoiam essa posição com relação aos refugiados.


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