Folha de S. Paulo


Nunca mais quero saber de Brasília, diz aposentado baleado em protesto

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O aposentado Carlos Geovani Cirilo, que está em tratamento em hospital de Belo Horizonte
O aposentado Carlos Geovani Cirilo, que está em tratamento em hospital de Belo Horizonte

Quando ouviu os disparos de bombas de gás lacrimogêneo na manifestação contra o presidente Michel Temer do dia 24 de maio na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, o aposentado Carlos Geovani Cirilo, 61, decidiu voltar para o ônibus que o levara ao protesto desde Belo Horizonte, onde mora.

Não teve tempo. Por volta das 16h, o coordenador do núcleo de aposentados da Asthemg (Associação Sindical dos Trabalhadores em Hospitais de Minas Gerais) foi atingido no maxilar por um tiro de munição letal. A bala entrou pelo lado direito do rosto e ficou alojada perto da carótida.

No dia, policiais militares foram filmados atirando com armas de fogo em direção aos manifestantes. O conflito somou 49 feridos e sete ministérios depredados.

Cirilo estava sozinho e seus documentos, guardados no ônibus. Só foi encontrado pelos companheiros no dia seguinte, no Hospital de Base.

"Eu tinha pensado: vou me afastar porque não estou aqui pra tomar nada de graça, e acabei tomando", contou à reportagem.

Era sua quarta vez em Brasília. Quis ir à manifestação "pra ver se melhora alguma coisa", mas terminou passando seis dias em coma.

Ao despertar, deu falta do seu celular, dinheiro, aliança e até do tênis. Passou a se alimentar por sonda no nariz.

Agora, ingere comida pastosa, e ainda sente dores no rosto, muito inchado. A bala permanece alojada em sua face –os médicos acharam arriscado retirá-la.

Cirilo passou por cirurgia de reconstrução dos ossos da face e, no dia 7, foi transferido em ambulância paga pela Asthemg ao Hospital João 23, em Belo Horizonte.

O custo das onze horas de viagem foi de R$ 6.500. Colegas de sindicato dizem que solicitaram o auxílio dos governos do DF e de Minas para transferir o aposentado, mas não foram atendidos.

Carlos Martins, coordenador-geral da Asthemg, afirma que chegou a ter reunião com representantes do governo do DF que teriam informado "que o governador [Rodrigo Rollemberg, do PSB] daria toda a assistência necessária para que ele pudesse ser removido da forma mais adequada possível".

"Quando cobramos, colocaram vários empecilhos. Não sabiam se iam garantir o transporte aéreo, iam estudar a possibilidade do terrestre, mas não deram retorno", diz.

Em 1º de junho, centrais sindicais protocolaram um ofício ao governador de Minas, Fernando Pimentel (PT), pedindo intervenção do Estado.

O aposentado diz que não esperava voltar como paciente ao João 23, hospital que conhece "como a palma da mão". O local, onde trabalhou como auxiliar de serviços gerais e segurança por mais de 30 anos, deixou de ser sua rotina há somente três meses, quando se aposentou.

Recebeu alta na última terça (20). Estava ansioso para voltar para casa. Atleticano, costumava assistir aos domingos os filhos Vander Lúcio e Geovani jogarem em seus times de futebol de várzea.

Ambos viajaram até Brasília em 25 de maio para acompanhar Carlão, como é conhecido, até sua volta a Minas. Ele tem ainda mais uma filha, quatro netos e uma bisneta.

Cirilo mora numa casa nos fundos do terreno de vizinhos na região noroeste de BH. Ele, que é baiano, chegou à cidade pequeno, após ser adotado por uma família. "Me batiam todos os dias", diz.

Estudou até a quinta série e aos 10 anos, fugiu de casa e morou na rua. Acabou conhecendo uma senhora que o criou até a maioridade, quando serviu no Exército.

Em 1984, prestou concurso para a Fhemig (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), que reúne os servidores de hospitais. Onze anos depois, ajudou a fundar a Asthemg e, desde então, costumava ir a manifestações.

"Agora nunca mais eu quero saber de Brasília", diz. E nem de protesto. "Só espero que consigam localizar ele [o policial que atirou] e cobrar dele o que fez."

OUTRO LADO

A Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal informou que há inquérito aberto para apurar de onde partiu o tiro que atingiu Cirilo, mas que o "impedimento da retirada do projétil do maxilar da vítima dificultará a identificação do autor".

Segundo a pasta, os três policiais flagrados usando armas de fogo estão afastados, em funções administrativas.

O governo do DF afirmou em nota que a família pediu que o aposentado fosse transportado, mas que a transferência foi descartada pelo quadro clínico. Diz ainda que, quando Cirilo apresentou melhora, a viagem foi novamente discutida, mas que "o paciente recebeu alta antes que a transferência fosse realizada".

A Secretaria de Saúde de Minas informou que, a pedido do governador, passou a acompanhar o caso de Cirilo e tomar providências. "No decorrer do encaminhamento dessas providências, o paciente foi transferido para o hospital João 23.", afirma em nota.


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