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'Imoral não é negociar com corruptos', diz presidente de ONG anticorrupção

Leon Neal/AFP
O presidente da Transparência Internacional, ONG que combate a corrupção, José Ugaz
O presidente da Transparência Internacional, ONG que combate a corrupção, José Ugaz

A crise no Brasil começará a ser resolvida quando a classe política que fracassou der lugar a uma nova geração de líderes realmente interessados no bem comum dos brasileiros e não em seus interesses pessoais.

A avaliação é de José Ugaz, presidente da Transparência Internacional, organização de influência mundial voltada ao combate à corrupção. Segundo ele, a Operação Lava Jato é uma janela de oportunidade para a revisão do sistema político e do modo como o setor privado brasileiro faz seus negócios. "A esta altura, as empresas devem ter percebido que os custos da corrupção são imensos, tanto do ponto de vista financeiro como de reputação."

Ugaz foi procurador especial anticorrupção responsável pela investigação e prisão do ex-ditador peruano Alberto Fujimori. Nesta semana, ele vem ao Brasil a convite da ministra Carmen Lúcia para assinar um acordo de cooperação entre a ONG que preside e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

"Digo agora que o Brasil não só exporta jogadores de futebol e corrupção, mas também um modelo anticorrupção exemplar", diz.

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Folha - Como avalia as mais recentes revelações de corrupção no país?
José Ugaz - Há um misto de surpresa e confirmação. De alguma maneira, esperávamos que isso ocorresse porque havia uma série de suspeitas sobre Michel Temer e algumas evidências que o vinculavam a casos de corrupção. Era questão de tempo. O que ocorreu simplesmente adiciona gravidade a um tema de urgência no país que é a situação política brasileira e sua democracia.

O que a ampliação do espectro político dos envolvidos aponta?
Alguns setores haviam dito que a Lava Jato era uma perseguição à esquerda. Outros haviam dito que era uma crise da direita empresarial. Mas o que ocorreu agora confirma o que os especialistas sempre afirmaram: corrupção não tem ideologia. Ela é transversal na política. O caso do Brasil é didático: há líderes de partidos de esquerda, há empresários que claramente não são esquerdistas e há políticos da direita envolvidos em casos graves de corrupção. Todos, de alguma maneira, tentam desmerecer a Lava Jato.

Por quê?
Porque a Lava Jato está funcionando e apontando para o problema, que são os corruptos. Isso indica que é preciso proteger a investigação para que ela siga com os níveis técnicos que tem apresentado, respeitando o devido processo legal, independentemente do nível político ou econômico dos investigados. Digo agora que o Brasil não só exporta jogadores de futebol e corrupção mas também um modelo anticorrupção exemplar.

O acordo de delação premiada feito com o dono da J&F tem sido criticado por ter sido brando demais. Qual é o limite nas negociações com infratores da lei?
O conceito da delação premiada existe, com outros nomes, em quase todos os países da América Latina. No Peru, usamos muito esse instituto no caso de Fujimori [ex-ditador peruano preso desde 2005] e Montesinos [braço direito de Fujimori] no ano 2000. Houve resistência de setores conservadores que defendiam ser imoral negociar com os corruptos. Eu sempre sustentei que imoral era não chegar aos crimes, não repatriar o dinheiro e manter a impunidade. Os italianos nos ensinaram em sua luta contra a máfia que a denúncia de um "insider" é muito importante, senão a única forma de avançar neste tipo de investigação.
Pode ser que, neste caso específico, tenha havido flexibilidade demais. Não conheço os detalhes do acordo, mas talvez seja necessário revisá-lo para aplicar ajustes aos termos.

A empresa se propôs a pagar 0,5% de seu faturamento em acordo de leniência, ou R$ 1 bilhão. A Procuradoria pede R$ 11, 2 bilhões, ou 5,8% do faturamento. Não é pouco?
Qualquer acordo tem que estar centrado no princípio de proporcionalidade ao dano causado e ao dinheiro desviado. Na nossa perspectiva, todo o dinheiro que foi matéria de corrupção deve ser devolvido. Em princípio, essas cifras parecem muito baixas e precisariam ser revisadas para sabermos se são proporcionais ao dano causado por essa empresa.

Como a delação pode ser feita sem passar a impressão de impunidade?
Sem dúvida, o tema de fundo da delação é a impunidade. É preciso equilíbrio. Soa muito mal que este senhor [Joesley Batista] tenha uma vida de luxo em NY, com apartamento, avião e iate. Mas, do outro lado da balança, é preciso avaliar o que sua delação permitiu em termos de avanço justamente no combate à impunidade.

O empresário declara em conversa com Temer que comprou dois juízes e infiltrou um procurador numa investigação. Como lidar com casos de corrupção no Judiciário sem retirar sua credibilidade para tocar uma operação anticorrupção?
A corrupção no Judiciário acontece em todas as partes do mundo, no Brasil e na Finlândia. Isso, no entanto, não pode colocar em questionamento um processo tão grande e forte. Se há alguns juízes e procuradores corrompidos, a única solução é investigá-los a fundo e puni-los exemplarmente, com o máximo rigor que a lei permite, porque esse tipo de caso pode colocar em risco a investigação.

Houve a revelação de áudios privados pela investigação. Vale tudo do combate à corrupção? Quais são seus limites éticos?
Não vale tudo no combate à corrupção ou a qualquer outro crime. Para isso, precisam ser respeitadas as regras do processo legal, que estão muito bem estabelecidas em qualquer legislação do mundo. O respeito ao devido processo legal é fundamental porque dá legitimidade à investigação. Pode ter havido alguns excessos ou erros na divulgação ou retenção de áudios, e pode ter havido uma função instrumental para quem os tornou público. Mas isso não nos parece contaminar a essência dos processos da Lava Jato.

Quais condições os favorecem negociatas ilegais entre as elites política e econômica?
A corrupção na América Latina em geral é um problema estrutural, sistêmico e histórico. No caso latinoamericano, diria que tem a ver com o padrão colonial imposto por Portugal e Espanha, que favorecia relações de clientelismo, gerando o que hoje os cientistas sociais chamam de neopatrimonialismo ou autoritarismo burocrático. Isso promoveu instituições fracas, que as novas teorias chamam de instituições extrativistas, em que classes dirigentes tomam o poder para seu benefício próprio, e não do bem comum. Por isso a América Latina é o continente mais desigual do mundo. Há uma elite riquíssima mas milhões de pessoas em extrema pobreza.

Quais medidas podem minorar os incentivos para a corrupção?
No âmbito da prevenção, investigação e sanção, é preciso simplificar as regras de atuação, aumentar a transparência e fortalecer a educação em valores. Em alguns casos, é preciso aumentar as penas para corruptores e romper a impunidade, sancionando os atores mais importantes. No fundo, trata-se de aumentar o coeficiente democrático do país, que hoje é uma democracia forma, mas não real.

Como assegurar a sustentabilidade de um processo anticorrupção?
Na América Latina, se abre uma grande janela de oportunidade para reconstruirmos as estruturas mínimas de relação com o poder. O setor privado, depois de tanto apanhar, deve ter entendido que é muito mais custoso submeter-se à corrupção que trabalhar honestamente. Os empresários na América Latina em geral sempre acreditaram que era mais rentável pagar subornos que trabalhar com integridade. Hoje em dia, não só está claro que os custos são imensos, haja visto a multa de US$ 2,6 bilhões imposta a uma só empresa [a Odebrecht], como também é grave o comprometimento da reputação da marca e o risco à própria existência das empresas.

Muitas estão quebrando e vão quebrar. Então este setor tem que fazer uma reflexão profunda e a Transparência Internacional busca agora abrir diálogo com esses atores para construir uma nova forma de fazer negócios na América Latina. Além disso, precisamos revisar nossas estruturas políticas: como estão organizados os partidos, como se financiam e quem chega ao poder e para quê.

Existe a impressão de que a repatriação de recursos é modesta diante dos valores confessados em delações.
Por respeitar o devido processo, precisamente, a repatriação de recursos não é tarefa fácil. Suas regras são muito complicadas. Existem tramas muito sofisticadas para retirar recursos de um país por meio de empresas offshore. Vimos que, apenas no caso da Odebrecht, havia quatro empresas offshore utilizadas para movimentar o dinheiro de um lugar a outro. Um processo de repatriação de dinheiro implica em desmontar todas essas estruturas, o que não é fácil, e distinguir o dinheiro legal do ilegal.

Nosso princípio é que todo recurso proveniente de corrupção deve ser confiscado e repatriado.

Como esses casos de corrupção impactam os cofres públicos?
Estamos falando de um impacto nos orçamentos de 14 países, pelo menos, porque o esquema revelado pela Lava Jato se repetiu como um espelho em cada um dos países para os quais empresas brasileiras exportaram seus serviços e sua corrupção. Esse esquema passa pelo financiamento da política, ou seja, das pessoas que vão assumir o controle do país, passa pelo pagamento de propina a funcionários e parlamentares, para que tomem decisões ilegais em favor das empresas, e passa por um custo extra de obras que têm seu custo multiplicado cinco ou dez vezes. Esse dinheiro é roubado dos cidadãos do país, especialmente dos mais pobres.

Qual o impacto da corrupção no desenvolvimento de um país?
Hoje no mundo já está claro que a corrupção é um dos fatores mais importantes para impedir o desenvolvimento dos países. Em um discurso histórico de 1996, o então presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, disse que a corrupção era um câncer que aprofundava a pobreza e impedia o desenvolvimento. Suas implicações não são apenas morais, elas desviam recursos e verbas que deveriam ser usadas para resolver os problemas fundamentais dos cidadãos.


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