Folha de S. Paulo


Para antropólogo, não há diálogo entre governo e organização indígena

Leonardo Wen/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ - BRASIL - 05 DE MAIO DE 2017 - Retrato do antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nas dependências do Museu Nacional. O antropólogo comenta, na entrevista, os problemas atuais da questão indígena no Brasil. (Foto: Leonardo Wen/Folhapress, ENTREVISTA DE 2º)
O antropólogo João Pacheco de Oliveira, da UFRJ

O relatório da CPI da Funai e do Incra tem como objetivo desmoralizar quem trabalha na demarcação de terras indígenas e coloca em risco a segurança de antropólogos e outros profissionais.

A afirmação é do antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) João Pacheco de Oliveira, 69.

Para ele, a CPI, o recente ataque aos índios gamelas, no Maranhão, e a mudança no comando da Funai revelam a deterioração dos direitos indígenas no país.

O relatório da CPI, de autoria do deputado ruralista Nilton Leitão (PSDB-MT), aprovado nesta quarta-feira (17) na Câmara, pede o indiciamento de antropólogos, procuradores e de lideranças indígenas.

Há quatro décadas estudando indígenas, João Pacheco, como é mais conhecido, é autor de diversos livros e orientou cerca de 60 teses e dissertações. Leia, a seguir, a entrevista concedida por telefone à Folha:

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Folha – Em 2013, o sr. disse que nunca havia existido uma ofensiva tão grande contra os direitos indígenas. O que mudou desde então?

João Pacheco – Não há uma alteração em relação à qualidade das ações, mas estão em uma conjuntura política modificada e se tornaram mais letais. O processo de demarcação de terras, por exemplo, já vem há alguns anos rateando, com demora excessiva.

Nas últimas semanas, o cenário se agravou. Há uma ausência completa de diálogo entre o governo e as organizações indígenas. Isso foi o característico da Semana do Índio e do Acampamento Terra Livre, com os indígenas em Brasília. No Congresso, os índios foram recebidos apenas por uma ação repressiva da parte da polícia.

Outro fato bastante preocupante foi a retirada do presidente da Funai [Antonio Costa] e a nomeação de outra pessoa no lugar [general Franklimberg Ribeiro de Freitas]. Não houve qualquer debate em relação a isso, os índios não foram escutados.

O mais terrível em relação a isso foi o motivo: o presidente demitido teria se recusado a nomear 23 pessoas indicadas por um partido político [PSC] que, dentro da divisão de cargos, teria o controle sobre a Funai. Não há nenhuma competência técnica envolvida, apenas barganha política.

O relator da CPI Funai-Incra pediu o indiciamento de pessoas que lidam com a questão indígena, incluindo antropólogos. Qual foi a repercussão do relatório entre os colegas?

De surpresa. Quase a totalidade das pessoas nem sequer foi ouvida pela comissão. Foi um teatro para produzir cenas de difamação de pessoas envolvidas em processos de criação de terras indígenas, no quais vários parlamentares têm interesses eleitorais.

Eles querem desmoralizar as pessoas que fizeram estudos técnicos sobre o assunto. Querem que as propostas sobre as áreas sejam detonadas.

Não são apenas antropólogos. Há vários procuradores. Os que conheço são excelentes procuradores, pessoas íntegras, competentes.

O relatório tem aspectos quase criminosos. Distribuem fotografias das pessoas para promover um verdadeiro linchamento delas em relação à atividade que têm. Tornam extremamente perigosos o exercício do trabalho profissional, a pesquisa de campo e até mesmo a circulação de pessoas. Estão colocadas como bandidos.

Após o ataque aos gamelas, políticos locais e o próprio Ministério da Justiça os acusaram de supostos índios, em alusão à perda da língua e à forte miscigenação. Como a antropologia aborda isso?

Para a antropologia, o fato de um elemento de uma cultura ser passado para a outra não necessariamente estigmatiza essa comunidade. A cultura circula entre grupos sociais, sociedades, continentes. Vivemos um mundo globalizado. Um estilo de música, como o rap, é praticado nos quatro continentes, sempre de forma variada.

As pessoas pensam em cultura imaginando que estão imaginando um museu com peças finalizadas.

Mas as populações estão mudando, os elementos de cultura são substituídos. Os brasileiros não podem ser transformados em portugueses do século 16 porque nem a nossa língua é mesma.

A questão da mestiçagem evoca um racialismo do século 19. As pessoas não podem ser explicadas em razão de um componente como a raça. Pode afetar a cor da pele ou um ou outro fenótipo, mas, culturalmente, as pessoas são indígenas.

Em entrevista, dom Pedro Casaldáliga disse que, apesar do momento ruim, os indígenas nunca estiveram tão organizados. O sr. concorda?

Neste momento, a mobilização é muito maior do que em outros momentos. O Acampamento Terra Livre está na 14ª edição e, em nenhum ano, teve essa monta como agora.

Foram 3.400 participantes, o que é impressionante. Se você considerar que a população indígena é de 900 mil habitantes, segundo o IBGE, na verdade os índios estão quase mobilizando 5% do seu total. Se fossem brasileiros, equivaleria a 10 milhões de pessoas.


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