Folha de S. Paulo


Morto há dez anos, Octavio Frias estimulava debate de ideias

Jorge Araujo jan.1986/Folhapress
Octavio Frias
Octavio Frias durante depoimento a jornalistas em sua granja, em São José dos Campos (SP)

Há dez anos, morria Octavio Frias de Oliveira, 94, publisher desta Folha.

Depois que me encomendaram este artigo, fiquei alguns dias matutando sobre o que eu poderia escrever sobre o "seu" Frias, como ele preferia ser chamado, dispensando tratamentos mais solenes. Abominava em especial o "doutor" com o qual algumas visitas inadvertidamente se dirigiam a ele e eram imediatamente corrigidas: "Doutor não. Não sou doutor em coisa nenhuma".

Também não gostava de ser confundido com jornalista, embora tenha pessoalmente apurado alguns dos grandes furos da Folha, como a notícia de que Tancredo Neves tinha um tumor e não uma diverticulite, conforme rezava a versão oficial.

Por mais de uma década, atuei como editorialista do jornal sob a batuta de Frias.

Como ele fazia questão de debater cada linha que seria publicada, tivemos a oportunidade de uma longa e próxima convivência. Nós da equipe de editorialistas tínhamos pelo menos duas reuniões diárias com ele.

A primeira, no início da tarde, servia para definir quais temas seriam abordados e o que diríamos. Frequentemente, ele a transformava numa verdadeira assembleia, convocando todas as pessoas que trabalhavam no andar (além dos editorialistas, secretárias, contínuos, garçom) para conhecer a opinião de cada um e proceder a uma votação.

Muitas vezes, mesmo contrariado, deixava-se levar pelo voto da maioria, mas nunca sem soltar uma expressão de lamúria do tipo "vencido, mas não convencido".

Outras tantas, em especial quando a ideia derrotada lhe era muito cara, optava pelo centralismo democrático: "Essa é a sua opinião e eu a respeito muito, mas, no meu jornal, vamos fazer do meu jeito".

Mesmo quando não gostava do resultado de suas "pesquisas", tinha interesse genuíno em saber o que as pessoas pensavam e com que argumentos sustentavam (ou não) suas ideias. Não surpreende que tenha criado o Datafolha.

A segunda reunião, já à noite, era para discutir os textos que havíamos escrito e aprová-los.

Perfeccionista, se ele não ficasse satisfeito com cada sequência de palavras, podia prolongar os debates indefinidamente, para desespero dos editores que precisavam fechar o jornal na hora certa.

Desconfio até que eles às vezes usavam nossas costas largas para justificar outros atrasos.

Além disso, como nossas salas eram contíguas, Frias sempre aparecia em horários aleatórios para perguntar pelas novidades do dia e trocar alguns dedos de prosa, que não raro viravam longas conversas com relatos sobre episódios de sua vida.

Um tópico constante era a Revolução de 32, na qual chegou a lutar nas trincheiras como "voluntário" –as aspas são porque a pressão sobre os jovens que não vestiam uniforme era tremenda; ele contava que, nos bondes, até as moças se levantavam para ceder-lhes o lugar.

Frias também gostava de contar histórias sobre o sítio em São José dos Campos que ele adquirira para passar os fins de semana, mas acabou transformando numa enorme granja comercial, sem mencionar as muitas anedotas, nem todas publicáveis, envolvendo grandes empresários e políticos de diversas eras.

Nos obituários, a praxe é louvar as qualidades e as realizações do falecido, mas não penso que isso funcione tão bem num texto para lembrar um aniversário de morte. Seria redundante em relação a tudo o que já foi publicado e viria com dez anos de atraso.

Parece-me mais apropriado mobilizar as lembranças para tentar imaginar como "seu" Frias reagiria ao tomar ciência de algumas das principais transformações que ocorreram no mundo na última década. O exercício não deixa de ser uma forma de cultivar sua memória e experimentar aquela saudade gostosa dos que já se foram.

Num primeiro momento, Frias talvez ficasse surpreso ao descobrir que Donald Trump foi eleito presidente dos EUA e passou a liderar a luta dos trabalhadores contra a globalização, mas ele rapidamente se recomporia.

Uma de suas tiradas favoritas era dizer que já havia "vivido o bastante para ter visto tudo acontecer ""e também o seu contrário".

Não sei dizer se os EUA na vanguarda do movimento antiglobalização entraria como "tudo" ou como "contrário", mas em algum entraria.

O que talvez o chocasse –e não era fácil chocá-lo, pois, se Frias era conservador na economia, no campo dos costumes ele se revelava praticamente um libertário– é o que agora a imprensa chama de "pós-verdade".

Frias era frequentemente descrito como pragmático, objetivo etc. Ele era tudo isso, mas era acima de tudo o que os americanos chamam de "no nonsense", isto é, alguém que rejeita absurdos, disparates e mesmo as mais mundanas enrolações.

Frias estava aberto a ouvir –e publicar– todo tipo de opinião, da extrema esquerda à extrema direita. Foi com essa aposta no pluralismo que ele e Cláudio Abramo reformularam as páginas de opinião da Folha, ainda nos anos 70, tornando-a o veículo mais identificado com a redemocratização, o que depois a ajudou a conquistar a liderança de mercado.

Mas em relação a fatos ele era intransigente. Ou eles ocorreram (e são fatos) ou não ocorreram (e não o são).

Se você quisesse vê-lo perder a paciência, bastava colocar algum tipo de intelectual tentando embaralhar essa distinção que para ele era fisicamente cristalina.

Eu o imagino vividamente comparando as fotos da posse de Trump e de Obama e afirmando que o novo presidente americano havia enlouquecido ao tentar sustentar que havia mais gente no seu evento do que no do antecessor. Nestes tempos de "fatos alternativos", faz falta alguém como o "seu" Frias que não tinha receio de mostrar que o rei está nu.

E ele ainda tinha o dom de fazê-lo de forma apaziguadora, sem criar um inimigo.

Uma de suas frases reflete tanto a vocação jornalística quanto a diplomática.

Sempre que ele ia fazer uma pergunta complicada a alguém, primeiro amaciava: "Você sabe que perguntas nunca são indiscretas; as respostas é que às vezes são". E deixava o interlocutor livre para desconversar honrosamente, ou enrolar-se em suas próprias palavras.

Frias, como ele mesmo contava, não entendia nada de jornais quando, junto com o sócio Carlos Caldeira Filho, comprou a Folha em 1962.

Mas entendia bastante de pessoas e tinha jeito para os negócios. Foi assim que, num espaço de 30 anos, transformou um periódico em sérias dificuldades financeiras no maior jornal do país.

*

TRAJETÓRIA

1912

Octavio Frias de Oliveira nasce a 5 de agosto, no Rio de Janeiro. O pai, Luiz Torres de Oliveira, era juiz em São Paulo e mais tarde foi prefeito da vila operária Maria Zélia, onde Octavio viveu quando criança

1920

D. Elvira, sua mãe, morre numa operação cirúrgica quando Octavio tinha sete anos

1923

O pai de Octavio perde seu emprego. A família se muda e enfrenta dificuldades

1926

Deixa o colégio para trabalhar como office-boy da Companhia de Gás. Em 1930, entra na seção de impostos da Secretaria da Fazenda de São Paulo. À noite, vende de casa em casa aparelhos de rádio

1932

Embora não acreditasse na Revolução Constitucionalista, alista-se como voluntário devido ao clima de mobilização. Participa de combates no Vale do Paraíba e passa o vigésimo aniversário dentro de uma trincheira

1935

Chega a diretor de Contabilidade, o terceiro cargo na hierarquia da Secretaria de Estado da Fazenda. Compra o primeiro carro. Frias trabalha de dia e frequenta a boemia à noite

1945

Com um grupo de amigos, liderados por Orozimbo Roxo Loureiro, funda o Banco Nacional Imobiliário, o primeiro do país a construir condomínios em grande escala, com preço de custo rateado entre os compradores. O banco, do qual Frias era diretor e o segundo maior acionista, com 10%, teria papel relevante na edificação de arranha-céus em São Paulo

1950

Traz o arquiteto Oscar Niemeyer a São Paulo, para projetar prédios a serem lançados pelo BNI, como o Copan (1952) e outros quatro edifícios. Contrata outros arquitetos modernistas de primeiro time, como Abelardo de Souza e Franz Heep

1953

Um ano após a morte do pai, funda a Transaco, empresa especializada na venda de ações ao público

1954

Começa um período de reveses. Sofre fratura na coluna numa queda de cavalo, e o BNI fica sob intervenção e é liquidado nos anos seguintes. Em 1955, perde a primeira mulher, Zuleika, e o irmão José em desastre de carro. Pouco depois conhece Dagmar de Arruda Camargo, com quem viria a se casar e ter filhos, netos e bisnetos

1961

Depois de atuar no então incipiente mercado de títulos, torna-se sócio de Carlos Caldeira Filho na Estação Rodoviária de São Paulo, a primeira do gênero, numa parceria que se estenderia por mais de 30 anos,

Ao longo da década, compra terrenos vizinhos a seu sítio em São José dos Campos (SP) e cria a Granja Itambi, que no auge chega a ter 1.700 funcionários e funciona até 1996

1962

No dia 13 de agosto, com Caldeira e Caio de Alcântara Machado, compra a Folha de S.Paulo de Nabantino Ramos. Era um jornal de porte médio, com 170 mil exemplares, que disputava com o "Diário de S.Paulo" a segunda posição na cidade

1965

Com Caldeira, compra um terço da propriedade da TV Excelsior. Em 1969, a emissora é recomprada pelo antigo dono

1968

Assume a Fundação Cásper Líbero e, além de ajudar a evitar a falência, revitaliza o conglomerado formado pela TV Gazeta e as rádios Gazeta AM e FM

1975

Após sanear as finanças da empresa e modernizar a impressão e distribuição, Frias dá início às reformas editoriais que fariam da Folha um jornal pluralista e cada vez mais influente no cenário nacional

1986

A Folha se torna o maior jornal do país. Frias começa a transferir a gestão do grupo a seus filhos Luiz (presidente) e Otavio (diretor editorial)

1996

Um ano após inaugurar sua nova gráfica, o Grupo Folha lança o Universo Online (UOL)

2002

É criada pela Fiam (Faculdades Integradas Alcântara Machado) a Cátedra de Jornalismo Octavio Frias de Oliveira

2007

A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira
Engel Paschoal
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É lançado pela Publifolha o livro "A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira", escrito por Engel Paschoal

Frias morre em 29 de abril, aos 94 anos, em São Paulo

2008

São inaugurados em São Paulo o Instituto do Câncer de São Paulo Octavio Frias de Oliveira, maior centro oncológico da América Latina, e a ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira, sobre o rio Pinheiros

No Rio de Janeiro, é inaugurada a escola municipal Octavio Frias de Oliveira


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