Folha de S. Paulo


Análise

Medidas Provisórias viraram canal para defesa de interesses nem sempre legítimos

Medidas Provisórias (MPs) foram o instrumento que os constituintes de 1988 encontraram para dar maior agilidade ao Poder Executivo. Dado o perfil parlamentarista do presidencialismo nacional, o governo, de fato, careceria de meios mais rápidos e eficazes diante de emergências de toda ordem, numa economia que se abriria para o mundo volátil e em transformação.

Após a publicação, os efeitos das MPs são imediatos; observados restrições e critérios de relevância e urgência, torna-se instrumento válido, útil e necessário. Faz sentido que existam.

As MPs seriam uma espécie de "revólver no coldre do policial": está lá, mas, idealmente, não deve ser usado —ou utilizado apenas no limite. Projetos de lei se ajustam melhor ao debate político do Parlamento e à dinâmica democrática da sociedade.

Contudo, como muita coisa na política do Brasil, o uso de cachimbos não apenas faz a boca torta, como dá opacidade ao ambiente, envolvendo-o rapidamente na neblina de uma fumaça espessa.

Ao longo do tempo, tanto os governantes abusaram do uso das MPs quanto os parlamentares aproveitaram-se delas para estabelecer um canal obtuso de defesa de interesses, nem sempre legítimos e transparentes.

Com a fragmentação e a dispersão partidárias, os Executivos encontraram nas MPs o caminho mais rápido e menos custoso para desviarem-se, tanto quanto possível, da equação "é dando que se recebe" do presidencialismo de coalizão nacional.

Com maioria simples, aprova-se uma MP; plenários relativamente esvaziados facilitam a vida do governo, que valorizou esse instrumento em detrimento dos demais. Critérios de relevância e urgência, paradoxalmente, assumiram certa irrelevância.

Também a elite parlamentar se favoreceu: o momento em que presidentes da Câmara e do Senado definem como ideal para votação das MPs é crucial para o Executivo, e isto compreende uma negociação nem sempre diretamente vinculada ao assunto da MP, entrando no processo interesses diversos e paralelos.

Tampouco foi apenas isso: percebeu-se que MPs poderiam carregar –e algumas passaram a carregar– "contrabandos": artigos e disposições de questões outras, de negociações paralelas; "jabutis" colocados no telhado.

Oportunidades para acossar, defender ou vender interesses: fazer clientelismo ou realizar achaques de e para empresas ou setores.

A Operação Zelotes colheu indícios nessa direção; a Lava Jato cita a "compra" de medidas por interesse de empreiteiras como a Odebrecht, com pagamentos a parlamentares que as defendessem. A realidade revelou a existência de balcões de negócios.

Isso poderia levar à conclusão de que se deve descartar o uso de MPs. Errado.

O "revólver do policial" não deve ser abolido; contudo, o uso cachimbo precisa ser descartado: o ambiente requer limpeza e a boca torta, reparação. Um maior controle em torno dos critérios de relevância e urgência, como maior fiscalização do que é, por fim, aprovado pelo Congresso se fazem necessários.

Ministério Público e controladorias críveis e independentes precisam agir. No mais, rever a fragmentação política e a promíscua relação entre Executivo e Legislativo.

CARLOS MELO é cientista político e professor do Insper


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