Folha de S. Paulo


Lava Jato: 'Não temos instrumento eficiente para identificar vazamentos', diz Dallagnol

Zeca Ribeiro - 9.ago.2016/Câmara dos Deputados
Audiência Pública sobre o PL 4850/16, estabelece medidas contra a corrupção. Procurador da República, Dr. Deltan Dallagnol
O procurador Deltan Dallagnol, da Lava Jato, em audiência na Câmara em agosto

Em entrevista concedida à BBC Brasil na última sexta-feira, na Harvard Law School, nos Estados Unidos, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da operação Lava Jato, disse que agentes públicos não vazam informações —a brecha estaria no acesso inevitável a dados secretos por réus e seus defensores.

"É muito difícil identificar qual é o ponto (de origem do vazamento), porque se você ouvir essas pessoas, elas vão negar", afirmou.

"E não cabe ouvir o jornalista em relação a quem lhe passou a informação porque existe, no Brasil, e deve existir, o direito ao sigilo de fonte", afirmou, um dia depois do juiz Sérgio Moro dizer à BBC Brasil que "identificar vazamentos é quase como uma caça a fantasmas".

Os vazamentos ganharam ainda mais destaque na tarde de segunda-feira, quando trechos do primeiro depoimento do empreiteiro Marcelo Odebrecht a Moro foram divulgados pela imprensa ainda enquanto Odebrecht estava na sala do juiz federal.

Em longa conversa com a reportagem, Dallagnol afirma que a corrupção "está no alto nível do poder" há décadas, mas que é "é praticamente inviável investigar fatos anteriores a 2002" porque instituições bancárias e fiscais não mantêm registros por tanto tempo e porque "tudo o que aconteceu antes de 2002 está prescrito".

O procurador federal defende, entretanto, que a corrupção se torne crime imprescritível e afirma que o deslocamento da operação também para os Estados poderá revelar "crimes praticados por toda uma miríade de partidos políticos", além de "PT, PMDB e PP".

Dallagnol nega críticas de que a operação "espetacularizaria" investigações e afirma que "uma busca de ampla transparência num caso que tende a despertar polêmicas por envolver pessoas tão poderosas" é algo "saudável".

Desde março de 2014, a operação já identificou R$ 6,2 bilhões em pagamentos de propina entre políticos e empresários, com prejuízos que podem chegar a R$ 42 bilhões. No total, 260 pessoas foram acusadas criminalmente — e 90 prisões preventivas foram decretadas.

Leia a entrevista completa com Deltan Dallagnol, que também defende a famosa apresentação de Powerpoint que fez sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e afirma que a Lava Jato deve durar, "pelo menos, até que as reformas no sistema político e de Justiça criminal sejam inevitáveis". Veja abaixo, a entrevista:

BBC Brasil: Qual é a importância da imprensa no contexto da Lava Jato?
Deltan Dallagnol: A imprensa tem um papel fundamental. O que a Lava Jato faz hoje é um diagnóstico de um estado de corrupção histórica e espalhada, sistêmica, em prejuízo do nosso país desde há muitas décadas. Agora, ela não oferece tratamento. Se queremos tratamento, nós precisamos evoluir para reformas.

E a imprensa desempenha dois papéis: ela revela para a sociedade esse diagnóstico — a gente trabalha no processo, traz à tona informações e a imprensa leva essas informações para as pessoas para que elas vejam o tamanho desse monstro. Uma coisa é saber que existe corrupção, outra coisa é olhar nos olhos desse monstro frente a frente.

Em segundo lugar, a imprensa opinativa, especialmente, se posiciona em relação à necessidade de mudanças para que nós, como país, possamos ter um horizonte diferente do passado. Além do papel dela no caso em si, ela tem um papel muito importante contra a corrupção, em exigir uma prestação de contas de governantes e trazer à luz o que acontece dentro da esfera pública.

BBC Brasil: Ainda sobre imprensa, críticos da operação falam em uma suposta espetacularização da Lava Jato, uma combinação entre as ações da operação e manchetes que levariam a investigação a talvez passar do tom. Qual é sua resposta?
Dallagnol: O que é espetacular não é a nossa postura perante à imprensa, mas são os fatos em si. A gravidade dos fatos faz com que as notícias tomem a dimensão que tomam. Se convocássemos uma coletiva para explicar o que eu fiz no dia de ontem, não ia ter interesse, não ia repercutir nada porque é esfera privada, ninguém falaria se estou espetacularizando a minha vida pessoal, se o que eu fiz ontem não tem interesse público.

A questão é que na Lava Jato existem tantas informações sobre uma corrupção que atingiu bilhões e bilhões de reais em muitos órgãos públicos ao longo de décadas, que isso indigna a sociedade. Toca com a gente porque isso reflete na carência de serviços públicos fundamentais, como nós vemos no Rio de Janeiro e por todo o país, em educação, segurança, saúde, estradas, buracos em estradas.

Isso tudo chama atenção e é natural que a sociedade siga o que está acontecendo, especialmente quando há pessoas de alto nível econômico envolvidas. Então, na minha perspectiva, o que existe é sim uma prestação de contas para a sociedade, uma busca de ampla transparência num caso que tende a despertar polêmicas por envolver pessoas tão poderosas e isso são coisas saudáveis.

BBC Brasil: Talvez o auge dessa especulação sobre espetacularização tenha acontecido naquela apresentação famosa de Powerpoint sobre o ex-presidente Lula. Este, talvez, tenha sido o momento de mais críticas e piadas em relação a Lava Jato. Como foi a produção daquela apresentação e dessa coletiva de imprensa, e por que a escolha por aquele formato?
Dallagnol: Coletivas como aquela já tinham sido feitas em muitos momentos anteriores. Por exemplo, quando foi feita uma coletiva sobre executivos da empresa Odebrecht, nós mostramos gráficos, mostramos como o dinheiro fluía de um lado para o outro por meio de contas no exterior, empresas offshore controladas pela Odebrecht, e o dinheiro fluía por uma série de camadas de lavagem de dinheiro até as contas dos agentes públicos.

Naquela oportunidade, os advogados da Odebrecht fizeram uma coletiva dizendo que havia espetacularização. Mas isso não repercutiu de modo negativo.

Entendemos que a sociedade quer a informação de modo transparente. Se o objetivo da comunicação é fazer com que o seu ouvinte compreenda o que você está falando e se você está tratando de uma matéria complexa, com sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro, você precisa apresentar isso de modo didático.

E o visual hoje faz parte não só do ensino, mas da comunicação, da transmissão do conhecimento. O que aconteceu especificamente nesta entrevista coletiva é exatamente um alcance maior em função da relevância pública dos fatos apresentados. Talvez por se ter oferecido uma acusação contra um ex-presidente da República, isso tenha tomado uma dimensão muito maior.

BBC Brasil: Ainda nesse caso, a percepção em redes sociais especialmente era de que o debate gerado pela coletiva não foi exatamente oriundo das denúncias presentes naquela apresentação, mas sim do formato da apresentação em si com o nome Lula no centro. Hoje os senhores teriam feito diferente? O que ficou de lição desse episódio?
Dallagnol: Vivemos um tempo em que se tornou famosa a expressão pós-verdade, um tempo em que narrativas são construídas e muitas vezes substituem o que aconteceu na realidade. Nessa coletiva saiu como se tivesse sido dita a frase "Nós temos convicções, nós não temos provas".

Aquela frase, como alguns veículos bem reportaram, jamais foi dita na coletiva, pelo contrário. O que se fez foi mostrar que existiam provas e elas nos levaram à convicção de que era o caso de oferecer uma acusação criminal. Sempre os gráficos buscaram tornar mais didática a complexidade da matéria que estava sendo apresentada.

Na acusação oferecida em relação ao ex-presidente Lula, existia aquilo que em Direito se chama de convergência de indícios. Quando várias indicações que implicam raciocínios lógicos convergem apontando no mesmo sentido. A ideia técnica é chamada nos livros como unidirecionalidade. O que se buscou foi mostrar que existiam várias evidências, grande parte delas indícios, apontando numa mesma direção.

Essas acusações foram apresentadas para a Justiça, que entendeu que existiam provas suficientes para submeter o ex-presidente a um processo judicial, e hoje estão submetidas para a Justiça, que vai oferecer um pronunciamento final, seja para condenar, seja para absolver.

BBC Brasil: Ainda sobre a relação com a imprensa, o ministro Gilmar Mendes fez críticas a supostos vazamentos na Lava Jato. O senhor, em resposta, teria dito que "é difícil você chegar à origem do vazamento, chegar a quem vazou a informação". Como a força-tarefa da Lava Jato, que é capaz de desvendar um esquema gigantesco que envolve as pessoas mais importantes do país, não é capaz de identificar, dentro da sua própria estrutura, quem faria esse tipo de vazamento?
Dallagnol: Eu discordo do seu pressuposto. Você está dizendo que o vazamento acontece a partir de dentro da própria estrutura. Em um caso com tanto interesse, nós vimos que várias informações que foram divulgadas na imprensa e apontadas como supostos vazamentos na verdade não eram, eram simplesmente uma divulgação legal de informação a partir da publicidade dos processos.

Agora, existiram também vazamentos. Nos casos em que apenas os agentes públicos tinham acesso aos dados, as informações não vazaram. Para não dizer que não vazaram, vazaram em apenas um caso e com dedicação e alguns lances de sorte foi possível identificar a origem do vazamento. Era uma auditora da Receita Federal, que foi identificada, foi alvo de buscas e apreensões, levada a depor e o depoimento dela permitiu esclarecer de onde saiu o vazamento.

Existem muitos casos em que os réus e seus defensores têm acesso à informação mantida de modo confidencial. Isso acontece especialmente nos casos de acordos de colaboração. Nesses casos, essas pessoas privadas, com acesso a informação, podem vazar aquela informação voluntariamente, ou podem resguardar a informação sem atentar para os cuidados que devem revestir informações sigilosas. E isso pode implicar nos vazamentos.

Quando acontece um vazamento numa situação como essa, existe um universo de pessoas grande que poderia ser a possível origem do vazamento, e é muito difícil identificar qual é o ponto. Porque se você ouvir essas pessoas, elas vão negar.

E não cabe ouvir o jornalista em relação a quem lhe passou a informação porque existe, no Brasil, e deve existir, o direito ao sigilo de fonte. Não se cogita criminalizar a atividade do jornalista, nem (impor ao) jornalista uma medida como busca e apreensão, quebra de sigilo de dados, ou colheita de depoimento, porque a imprensa deve ser protegida numa democracia.

Então, não existem diligências ou medidas eficientes para se descobrir a origem do vazamento na maior parte desses casos. De novo, vazamentos são ilegais, eles são condenáveis, não devem acontecer, são ilegais... Agora, o problema é de realidade. Assim como é difícil descobrir corrupção e foi muito difícil descobrir antes da Lava Jato, é muito difícil descobrir, na própria Lava Jato, a origem dos vazamentos.

Fazendo um comparativo, a corrupção é um crime que acontece entre quatro paredes, é revestido de ato legítimo e o pagamento da propina é feito por uma série de atos que lavam o dinheiro e fazem que ele chegue à ponta parecendo limpo. Isso faz com que seja muito difícil revelar corrupção, ela acontece no Brasil no alto nível do poder há décadas, mas só agora com a Lava Jato ela foi revelada em toda a sua dimensão.

E por que ela só foi revelada agora? Porque foi aplicado um instrumento, que é a colaboração premiada, que permite que alguém dê um ponto de partida para a investigação. A gente segue aquela linha e se evidências confirmam o pontapé inicial, aí sim nós vamos oferecer acusações criminais, eventualmente pedir condenações criminais.

E por que nós não tínhamos acordos de colaboração antes? Porque a alternativa era a impunidade, porque quando a pessoa consegue a impunidade ela não faz um acordo de colaboração. Porque o nosso sistema de Justiça criminal não funciona no Brasil.

Então existia uma razão para no caso Lava Jato nós conseguirmos identificar todo esse mundo de corrupção que foi o fato de que, episodicamente, o sistema de Justiça funcionou. Isso fez com que, neste caso específico, a gente conseguisse detectar a corrupção. Agora, nós não temos um instrumento eficiente para identificar a fonte de um vazamento com as restrições devidas relativas à proteção da imprensa.

BBC Brasil: Qual seria o desfecho ideal da Lava Jato? Em que momento a operação se daria por satisfeita ou, não, a Lava Jato deve ser algo constante e presente?
Dallagnol: Ela deve ir até onde os políticos, empresários e lavadores de dinheiro foram cometendo crimes de corrupção. Esse é o limite teórico. Precisamos descobrir tudo o que estiver nas nossas linhas de investigação, o máximo de corrupção possível e cumprir a nossa tarefa constitucional e legal que é descobrir crimes, submetê-los com suas provas à Justiça pedindo aplicação de penas e, evidentemente, o ressarcimento do dinheiro desviado.

BBC Brasil: Não existe um horizonte temporal? Porque a corrupção é endêmica no Brasil, como o senhor disse, há décadas. Esse parece um trabalho infinito.
Dallagnol: Não existe porque, ainda que supuséssemos que estamos encerrando as investigações nesse momento porque não há mais nenhuma prova, ainda assim, se um réu mudar de ideia e decidir cooperar, ele pode trazer uma série de outros crimes escondidos e a investigação pode se expandir novamente.

Nós não temos opção sobre o que vamos investigar, precisamos investigar tudo aquilo que se coloca à nossa frente, todos os fatos criminosos e responsáveis. Agora, eu gostaria que a Lava Jato tivesse forças para ir, pelo menos, até que as reformas no sistema político e de Justiça criminal fossem inevitáveis.

BBC Brasil: Há quem acredite que as prisões temporárias sejam uma forma injusta de forçar investigados a fazer delações. Como garantir que esse processo ocorra de forma natural e não compulsória?
Dallagnol: Não existe nenhuma coerção sobre qualquer pessoa ou empresa para que colabore com as investigações. Existiu um discurso no contexto de pós-verdade, mas ele é desmentido pelos números. A Lava Jato tem 260 pessoas acusadas criminalmente, e houve 90 prisões preventivas. Agora, a maior parte dessas preventivas foram sendo revogadas à medida que se tornaram desnecessárias.

Apenas em torno de 10% dos réus acusados criminalmente por corrupção e crimes gravíssimos estavam presos e apenas 3% desses réus acusados estavam presos sem uma condenação criminal. Ou seja, as prisões, num caso imenso, estão acontecendo de modo parcimonioso, apenas quando estão presentes os requisitos.

Como quando a liberdade daquela pessoa representa um risco para a sociedade, risco de fuga, evitar aplicação das penas, continuar praticando crimes ou obstruir investigações. Quando você olha para os grandes empreiteiros, você observa que foram praticados centenas de crimes de corrupção ao longo de mais de uma década e que, ao longo das investigações, os contratos estavam vigentes e existiam compromissos de pagamento de propina.

Não existia outra alternativa para estancar a prática de crimes se não a prisão daquelas pessoas para proteger a sociedade. A Lava Jato não prende demais, ela trata a prisão como algo excepcional, um remédio amargo.

A segunda parte da crítica seria: "As prisões da Lava Jato são usadas para extrair confissões forçadas, uma espécie de tortura". Essa crítica também não procede, basta vermos pelos números que mais de 70% dos acordos foram feitos com réus soltos que jamais foram presos. Ou seja, a maior parte das colaborações não vem de prisões, as prisões não são condições necessárias para a colaboração.

As colaborações não vêm de prisões, na maior parte. Mas o contrário também não é verdadeiro, prisões não conduzem a colaborações. Temos mais de 200 mil presos provisórios e não há minimamente uma correspondência com o número de colaborações. E mais: se você fosse colocar essa tese de que se prende para que se colabore, seria natural que depois de uma prisão o MP buscasse o réu com uma oferta generosa. Mas isso não aconteceu. Em 100% dos casos da Lava Jato foi o réu, com seu advogado, que procurou o MP objetivando fazer uma colaboração.

BBC Brasil: O senhor falou sobre a dimensão da Lava Jato e de uma corrupção endêmica 'há mais de 10 anos". Me lembrei de aspas atribuídas a família Odebrecht de que dizem que esse tipo de negociação criminosa acontece há mais de 40 anos no Brasil, desde a ditadura militar. Os casos anteriores ao governo PT também são investigados na Lava Jato?
Dallagnol: O governo PT começou em 2002. É praticamente inviável investigar fatos anteriores a 2002 por duas razões: em primeiro, em razão do decurso do tempo. Instituições bancárias, fiscais, mantêm registros de atividades por um período de 5 anos, talvez um pouco mais. Mas não por 15 anos. Além disso, tudo o que aconteceu antes de 2002 está prescrito. E nós queremos mudar isso. Na nossa opinião, a corrupção deveria ser imprescritível, como é na Inglaterra e como está sendo aprovado em países da América Latina. Nessa hipótese, poderíamos avançar sobre fatos pretéritos, não importando quando foram praticados.

Embora não possamos avançar para antes de 2002, hoje a investigação está avançando para governos estaduais, por meio da colaboração das empresas. No início da Lava Jato, ela se dirigia ao que estava acontecendo no governo federal, especificamente na Petrobras. E os partidos cujos crimes foram descobertos eram especialmente PT, PMDB e PP. Porque foram eles quem colocaram os diretores na Petrobras, não tinha diretor vinculado a partidos de oposição porque quem decidia era o governo e sua base aliada.

Essa foi a razão pela qual a Lava Jato se circunscreveu, num primeiro momento, mais em relação a esses partidos. Agora, à medida que estamos expandindo as colaborações com empreiteiras que atuaram em diferentes níveis de governo, não só federal, mas em governos estaduais gerenciados por partidos de oposição, estão sendo revelados e vão ser relevados crimes praticados por toda uma miríade de partidos políticos.


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