Folha de S. Paulo


Magistrada aposentada reivindica título de primeira juíza negra do país

Ao ouvir dizer que a colega Luislinda Valois, que iniciou a carreira em 1984, era tratada como "a primeira magistrada negra do Brasil", a juíza aposentada Mary de Aguiar Silva, 91, reclamava e repetia que foi nomeada ao cargo em 1962.

O relato é da sobrinha de Mary, a advogada Sheila Aguiar, 55, que prepara uma biografia sobre a tia, com quem vive em Salvador. A aposentada tem dificuldade em falar pelo acúmulo de problemas de saúde.

Também baiana e desembargadora aposentada, Luislinda foi nomeada ministra de Direitos Humanos no último dia 3. A pasta existia no governo Dilma Rousseff (PT) e foi recriada pelo presidente Michel Temer (PMDB) após críticas sobre a ausência de mulheres e negros no primeiro escalão federal.

Filiada ao PSDB desde 2013, ela foi apresentada tanto em divulgações do Planalto como do próprio partido como "a primeira juíza negra do Brasil".

Mas, em 2010, o Tribunal de Justiça da Bahia havia feito uma sessão solene para homenagear as magistradas negras do Estado e Luislinda foi listada, cronologicamente, como a terceira delas. Antes, vinham Mary e Alexandrina de Almeida Santos, morta em 2009, que assumiu uma comarca no interior em 1967.

Ainda assim, o rótulo de pioneira a Luislinda colou. Ela própria afirmou em entrevista ao jornal baiano "A Tarde": "Dizem, em pesquisa comprovada, que eu sou a primeira juíza negra do país".

Também continuou a ser apresentada da mesma forma em eventos oficiais e em programas de televisão, como Xuxa e Jô Soares.

Em 2013, Luislinda estrelou campanha do governo da Bahia sob essa rotulação. Ao assumir como ministra, o Planalto também divulgou vídeo e publicidade em que ela era chamada assim.

TCE-BA
06/05/2016 - Desembargadora Luislinda Valois, ministra palestra do Café com Prosa em homenagem ao Dia das Mães, organizado pela Asteb em parceria com a Escola de Contas José Borba Pedreira Lapa. Foto: TCE-BA
Desembargadora aposentada Luislinda Valois, em evento em homenagem ao dia das mães

O juiz Ernani Garcia Rosa é um dos que questionam como o pioneirismo é divulgado. Segundo ele, as magistradas "conquistaram brilhantemente seus espaços em épocas diversas", mas "[Luislinda], mais do que ninguém, sabe que na Bahia as primeiras juízas negras foram" as outras duas.

Além das juízas baianas, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul informa que a magistrada Marilza Lúcia Fortes, que também se considerava negra, iniciou a carreira em 1980, quatro anos antes de Luislinda. Foi promovida a desembargadora em 2006 –já a atual ministra, em 2011. Marilza Lúcia morreu em 2012.

SEM PESQUISA

Procurada, Luislinda diz que não se lembra da homenagem do tribunal baiano. "Se quiserem dizer que eu não sou, eu já estou dizendo: eu não sou a primeira juíza negra do Brasil. Talvez seja a última, mas eu não quero ser a última. Quero muitas juízas negras", afirmou à Folha.

Indagada se, então, as informações divulgadas pelo PSDB e Planalto eram inverídicas, ela se retificou: "Não estou dizendo que não é verídica. Por favor. Eu estou dizendo que não fiz pesquisa sobre isso. Como posso [saber]?", questionou.

A ministra diz que nunca corrigiu as pessoas que a creditavam assim porque ia ter que "sair no mundo inteiro dizendo isso".

De acordo com Luislinda, ela "não incorpora essa denominação" de primeira juíza negra. "Eu me descrevo como juíza, negra, pobre, da periferia, candomblecista, de cabelo vermelho, divorciada", afirma.

No entanto, ao ser questionado, o governo disse que "o Portal Planalto divulgou informações com base na biografia da própria ministra". Procurado, o PSDB disse que a posição do partido é a mesma de Luislinda.

20 ANOS ANTES

Soteropolitana, Mary de Aguiar Silva é filha de um motorista e uma doméstica, segundo a sobrinha Sheila, e afirma "ter muito orgulho" da sua cor.

Ela se formou na Universidade Federal da Bahia.

O Tribunal de Justiça aponta que Mary começou a trabalhar em Remanso, no extremo norte da Bahia, e foi transferida em 1967 para Belmonte, no sul do Estado.

Sheila diz que a tia contava muitas histórias sobre a dificuldade que sofreu por ser uma juíza mulher no sertão, enfocando menos o aspecto racial. "Era uma época em que os coronéis comandavam a região", afirma.

Mary não casou, nem teve filhos. Segundo reportagens do período, era sempre acompanhada pela mãe, Guiomar.


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