Folha de S. Paulo


Novo modelo de demarcação vai reduzir conflitos, diz Temer

Beto Barata/PR
O presidente Michel Temer durante evento em Ribeirão Preto (SP)
O presidente Michel Temer durante evento em Ribeirão Preto (SP)

O presidente Michel Temer afirmou nesta quinta-feira (19) que a portaria que altera o sistema de demarcação de terras indígenas, em vigor no país desde meados dos anos 90, visa reduzir "os conflitos enormes que existem nessa área".

A portaria, publicada nesta quarta-feira (18) no "Diário Oficial" pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, criou um grupo de trabalho no ministério com o poder de reavaliar os processos de demarcação em andamento.

Além disso, a portaria afirma que o ministério poderá realizar "diligências" e observar "cumprimento da jurisprudência do STF [Supremo Tribunal Federal]" no que tange aos processos submetidos à assinatura do ministro.

Conforme mostrou a Folha, com a nova portaria, o Ministério da Justiça passa a deter, na prática, o poder de rever todo o processo original da Funai (Fundação Nacional do Índio). A medida fragiliza os trabalhos da entidade, subordinada ao ministério.

A nova medida gerou críticas de instituições ligadas à questão indígena. Porém, Temer negou prejuízos ao processo de demarcação de terras e afirmou que a Funai não ficará desprestigiada com a portaria do Ministério da Justiça.

"Houve estudos conducentes à pacificação da questão das terras indígenas com os fazendeiros. Isso tudo está sendo examinado, muito vagarosamente, com muito critério", afirmou o presidente, sobre a nova medida.

Temer deu as declarações após um encontro com produtores rurais em Ribeirão Preto (a 313 km de São Paulo), onde anunciou a a liberação de R$ 12 bilhões para o pré-custeio da safra agrícola 2017/2018. O valor destinado à aquisição antecipada de insumos, o pré-custeio, é R$ 2 bilhões superior ao montante de 2016.

Segundo o Banco do Brasil, a antecipação dos financiamentos de custeio se destina a culturas da safra de verão 2017/2018, como soja, milho, arroz e café, permite melhores condições aos produtores para o planejamento de suas compras junto aos fornecedores e contribui para o incremento das vendas de sementes, fertilizantes e defensivos.

PROCESSO
A Folha havia revelado em 12 de dezembro que um plano do governo iria alterar o regramento das demarcações, incorporando teses caras a entidades do agronegócio e à bancada ruralista no Congresso. Na época, o Ministério da Justiça disse desconhecer o assunto e negou que iria alterar o sistema.

A portaria agora divulgada pelo ministro, porém, incorpora todos os principais elementos do estudo revelado em dezembro, incluindo uma "reparação" a indígenas em caso de "perda de área".

O processo de demarcação hoje em vigor segue o rito previsto no decreto 1.775, de janeiro de 1996, assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo então ministro da Justiça, Nelson Jobim, cuja constitucionalidade foi reconhecida diversas vezes pelo STF.

Pelo decreto, a análise antropológica da terra apontada como indígena e o contraditório na discussão do tema, incluindo a manifestação de partes interessadas e a apresentação de laudos e testemunhas, ocorrem no próprio decorrer do processo sob responsabilidade da Funai.

Depois que o processo é encerrado na Funai, segue para a assinatura do ministro da Justiça e, de lá, para a Presidência da República.

MUDANÇAS

A portaria também abre espaço para a ação de grupos de pressão do meio ruralista, como sindicatos de produtores rurais, ao estabelecer que poderão "ser criados outros meios de participação das partes interessadas, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas".

Ao falar sobre "jurisprudência do STF", a portaria de Moraes abre espaço para a adoção, pelo Executivo, da tese do "marco temporal" levantado por alguns ministros do tribunal, segundo a qual os indígenas só poderiam ter direito às terras caso estivessem sobre elas em outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição, ou se tivessem brigado judicialmente por elas depois disso.

CRÍTICAS

A organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental) reagiu negativamente à portaria. "É bastante preocupante porque a portaria cria um novo sistema de demarcação, usurpando a competência do presidente da República", disse Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. Ela afirmou que a portaria na prática promove uma "reanálise do trabalho antropológico" não prevista na legislação em vigor.

O secretário executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Cleber Buzatto, afirmou que a portaria foi recebida "com surpresa e preocupação". "Não houve qualquer tipo de discussão com o movimento indígena e nesse sentido entendemos que há uma ilegalidade na portaria", afirmou Buzatto, em referência a uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que prevê a participação dos indígenas na discussão prévia de medidas tomadas pelo Estado que tenham repercussão sobre eles.

Buzatto disse que a medida "cria um ambiente de desconfiança sobre o caráter técnico dos estudos realizados pela Funai". "A portaria dá a entender que o ministério está criando uma instância que vai supervisionar os estudos técnicos dos grupos constituídos para a identificação e delimitação das terras indígenas", disse Buzatto.

A respeito da menção ao STF na portaria, tanto Buzatto como Juliana afirmaram que não há jurisprudência consolidada nem súmula no tribunal a respeito dos temas do "marco temporal" e do "esbulho renitente", tese levantada pelo ministro Teori Zavascki, segundo a qual os indígenas têm que comprovar que lutaram pelas terras. Indígenas e indigenistas apontam que diversos grupos indígenas foram expulsos de suas terras tradicionais ao longo do século passado, antes da Constituição de 1988, e por isso não poderiam ter lutado fisicamente ou judicialmente pelas terras na data da promulgação da Carta.


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