Folha de S. Paulo


Papa Francisco é como João Paulo 2º com sinais trocados, diz sociólogo

Joel Silva - 20.fev.2013/Folhapress
SAO PAULO,SP, BRASIL- 20-02-2013: Foto do coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, Francisco Borba Ribeiro Neto, que foi entrevistado sobre o a renuncia do papa Bento 16.. ( Foto: Joel Silva/ Folhapress ) ***MUNDO *** EXCLUSIVO FOLHA***
Ocoordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, Francisco Borba Ribeiro Neto

As dificuldades enfrentadas pelo papa para que parte dos católicos aceitem suas reformas não surpreendem o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

"A proposta do papa Francisco é fundamentalmente uma questão de postura, e não de norma", resume Ribeiro Neto.

"No entanto, como as pessoas, de ambos os lados dos debates, estão sempre mais preocupadas com a lei, acabam cobrando do papa uma coisa que ele não quer dar. Isso cria um choque com o mundo muito difícil de ser resolvido."

O pesquisador diz ainda que Francisco pode ser visto como "João Paulo 2º com sinal trocado": os dois papas têm história de vida e perfis semelhantes, mas enfatizam necessidades opostas da igreja.



Folha - Que balanço o sr. faz do pontificado de Francisco até agora?

Francisco Borba Ribeiro Neto - Acho que dois pontos de fundo precisam ficar claros.
A primeira, particularmente para nós, brasileiros, é que Francisco é de certa forma um João Paulo 2º com sinal trocado.
São dois papas que vêm da periferia do sistema, da Polônia e da Argentina, que viveram uma realidade ditatorial, ambos profundamente carismáticos e ambos reformadores, em algum grau.
A questão é que João Paulo 2º está preocupado com a secularização excessiva trazida pelo pensamento progressista. Francisco, por outro lado, critica o clericalismo e um rigorismo excessivo do pensamento conservador.
Quando a gente pensa nessa chave de leitura, acaba se dando conta de que um papa dificilmente vai ver o sucesso de seu pontificado, de seu programa, por uma questão de tempo -demora para que o que ele propõe seja de fato implementado.
João Paulo chegou perto disso porque teve um pontificado longuíssimo.

E o segundo ponto?
A segunda coisa importante é que a proposta do papa Francisco é fundamentalmente uma questão de postura, e não de norma.
Quando ele está falando em acolhida aos divorciados, aos homossexuais, faz questão de dizer: mas continuamos mantendo todos os preceitos católicos sobre essa questão. Isso fica mais claro no caso da homossexualidade, quando o papa tem um discurso até agressivo contra a ideologia de gênero.
Em resumo, o problema para ele não é a norma, a letra da lei, mas a postura das pessoas. No entanto, como as pessoas de ambos os lados estão sempre mais preocupadas com a lei, acabam cobrando do papa uma coisa que ele não quer dar. Isso cria um choque com o mundo muito difícil de ser resolvido.
Assim como até hoje existem enclaves na América Latina recalcitrantes ao pensamento de João Paulo 2º, mesmo após ele ter sido reconhecido como santo, ainda existe muita gente que não gosta do papa atual, que não quer seguir seu pensamento, e vai existir por muitas décadas ainda gente recalcitrante e agressiva diante da proposta de Francisco, assim como gente que se diz defensora da visão dele fazendo coisas bem diferentes do que ele gostaria de ver na Igreja.

Quão excepcional é a contestação do grupo de cardeais ao documento do papa sobre a comunhão aos divorciados? Há quem fale em guerra civil na Igreja.
É um grupo recalcitrante que vai existir em qualquer contexto e com qualquer papa. Mas essa questão está ligada a dois grandes problemas que determinam um pouco o contexto político e eclesial [ligado à estrutura da igreja] da ação de Francisco.
De um lado, há o problema de que os cardeais e os bispos que estão reclamando representam igrejas muito ricas e muito fortes em termos de sustentação econômica do Vaticano.
É natural que algo assim tenha certo impacto: o papa não vai chegar a mudar sua doutrina por causa disso, mas o jogo político que se estabelece na Santa Sé a partir daí é muito forte.
Por outro lado, há todo o problema de uma comunidade católica que sempre se sentiu perseguida pelos ideais da modernidade. E que, de repente, sente-se um pouco órfã quando o papa faz essa tentativa de acolher a modernidade.
Mais do que optar propriamente pelos valores da modernidade, o que o papa faz é acolher quem tem tais valores, mas isso transmite a seguinte impressão para esses grupos: o papa está abraçando meu inimigo, o que significa que eu estou sozinho. Isso particularmente naqueles contextos nos quais a Igreja sobreviveu por conta do seu grupo conservador, como nos EUA e em algumas regiões da Alemanha, embora entre os alemães essa realidade seja mais plural. Nos EUA, os católicos progressistas são muito menos significativos do que os conservadores.

É interessante o sr. mencionar isso, porque pareceu surpreendente o apoio relativamente alto dos católicos americanos a Donald Trump, mesmo após Francisco criticá-lo de forma quase direta.
O caso do Trump, embora não tenha a ver com a Santa Sé, mostra indiretamente o grau do problema que nós enfrentamos. Nos EUA, temos uma comunidade conservadora que acredita piamente nos seus valores e não sabe como defendê-los diante do mundo. Toda vez que o mundo sinaliza que está indo mais para o outro lado, ela se fecha ainda mais no seu fundamentalismo.
E isso mesmo considerando que, no espectro dos jesuítas do século 20, Bergoglio é um conservador - nunca abraçou a teologia da libertação, por exemplo. Mas ele é um conservador que acolhe os progressistas, o que deixa os conservadores preocupados.

Seria correto dizer que essa resistência é tipicamente um fenômeno do alto clero?
Não, isso se espalha por toda a igreja. O que acontece é que o alto clero tem a função de orientar a comunidade católica, e fica muito difícil tal orientação num momento como este. O alto clero, além disso, tem uma tendência maior a procurar indicações e respostas precisas e seguras do que a multidão dos fiéis, que costuma se satisfazer com uma noção mais generalista e mais afetiva das questões em jogo.
Por exemplo: a questão da comunhão para os casados em segunda união é muito pouco significativa para um católico casado médio que não está separado. Agora, para um padre que vai dar uma absolvição para uma pessoa nessa situação, que vai ter de dizer "essa pessoa pode ou não pode comungar", é um problema enorme.

Teremos um sínodo sobre as vocações em 2018, o que deve incluir o debate sobre como formar mais religiosos e religiosas num contexto em que há crescente escassez de padres. É possível que esse sínodo seja tão polêmico quando o da família caso se fale em ordenação sacerdotal de homens casados?
Creio que a tendência é de menos polêmica. Havia na questão das famílias um pomo da discórdia muito preciso e muito mal resolvido por décadas. Não é à toa que apenas esse ponto está gerando conflito em tudo, como já acontecia dentro do episcopado e entre os teólogos há muito tempo. Francisco não tinha como escapar, a coisa precisava ser repensada.
No caso das vocações, há dois pontos delicados. A ordenação de homens casados é um problema que todo mundo debate e que tanto a alta cúpula quanto os teólogos concordam que é um detalhe secundário. Existem "n" alternativas de como fazer isso na prática, é uma coisa relativamente tranquila. Independentemente do resultado, para um lado ou para o outro, vai ser uma coisa relativamente fácil de ser absorvida.
Outro problema extremamente complicado é a ordenação de mulheres, mas o que simplifica as coisas é que Francisco já se declarou contrário a essa possibilidade, e o alto clero também está fechado nessa questão. Eu acho que vai haver alguma coisa nesse sentido de valorização do papel da mulher na igreja, mas não será nada polêmico.


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