Folha de S. Paulo


Opinião

Arranjo político e institucional do impeachment é um ornitorrinco

E ei-lo aí de novo, nosso querido ornitorrinco, a simbolizar o arranjo político e institucional que levou à destituição da presidente da República. Que bicho é esse? Seria uma mutação genética de nosso passado de canetadas, golpes e quarteladas que se adaptou, como um híbrido, ao ambiente da redemocratização?

Bem, o bico, visto daqui, lembra o de um pato da Fiesp; o corpo parece legal, mas o coração pulsa ao ritmo de um conservadorismo corrupto e golpista; já as perninhas, curtas, podiam ser de mentira -ou tão verdadeiras quanto a suposição de que não houve conspiração, apenas desdobramentos naturais de um processo constitucional supervisionado por instituições insuspeitas. Não é preciso sair em defesa da presidente afastada para demonstrar que a letra constitucional pode ser rasurada, à luz do dia, pelo Senado e o presidente do STF -como na preservação dos direitos políticos da ré, um sugestivo sinal de acordão.

Se a tese do "golpe" tem um aspecto forçado, é de perguntar por que ela encontra algum eco fora das fronteiras sectárias do petismo. E porque pessoas sérias, que não se deixam enganar pelo proselitismo de grêmio acadêmico que assola a esquerda, preferem tratar o processo como "impeachment bananeiro", "manobra parlamentar" e outras construções semelhantes. Se caracterizar um golpe em sentido clássico é ir longe demais, tampouco pode-se pretender que se tratou de um processo "puro sangue" –com evidências irrefutáveis de crime de responsabilidade que levaram a sociedade a pedir o afastamento da presidente.

Prevaleceu o julgamento político do "conjunto da obra", num momento em que a gestão desastrosa da presidente, seguida de clamoroso estelionato eleitoral, sob os abalos do terremoto da Lava Jato, projetava sombras sobre um país dividido, retirava a confiança dos agentes econômicos e despertava justificados protestos da classe média e seus porta-vozes. Junte-se a isso o gangsterismo de Eduardo Cunha e a aflição da turma de corruptos de direita para "estancar a sangria" das apurações –como explicitou-se no famoso diálogo de Romero Jucá (homem de confiança do esquema Temer) com Sérgio Machado, revelado por esta Folha.

Agora, está consumado. O cheiro de conchavo está no ar e o PT pode se fazer de vítima –tudo conveniente, dentro das circunstâncias.

Inconveniente é o que o petismo tenta esconder sob a retórica da perseguição: sua inestimável contribuição ao propalado "golpe". A queda da presidente Dilma Rousseff pode ser atribuída a uma série de fatores, alguns até sistêmicos, mas não há como fugir da constatação de que o PT, numa trajetória que foi se tornando cada vez mais arrogante e suicida, colocou-se aquém dos desafios políticos e econômicos que precisaria enfrentar.

Em que pesem os reconhecidos acertos em políticas distributivas, o partido mudou de sinal, trocando a inicial crítica ao populismo pelo neo-varguismo; entregou-se alegremente à corrupção em sociedade com empreiteiras; aliou-se à escória com a desculpa esfarrapada de que era preciso governar; e, por fim, mas não menos importante, retrocedeu, notadamente com Dilma, a um projeto econômico que parecia misturar Brizola com Geisel num coquetel indigesto de intervencionismo estatal, negligência fiscal, preconceito anticapitalista e pura barbeiragem.

O que será da xepa do PT ainda é uma incógnita, mas o impeachment abrevia, ao que tudo indica, o ciclo social-democrata pós-democratização, deixando o país diante de novas perspectivas. Ou, ao menos por ora, de velhas –já que em muitos aspectos o governo Temer é um retorno político ao passado, com seus medalhões bigodudos de rabo preso com a corrupção, liberais de meia-pataca, demagogos fisiológicos e conservadores de província.

Salva-se a equipe econômica, comandada pelo ex-presidente do Banco Central de Lula, que gostaria de tê-lo visto no governo de sua teimosa criatura. O programa, dada a dramaticidade do quadro, promete ser indigesto –e não será surpresa se acabar postergado e desfigurado. Diz-se que Temer tem o parlamento, mas até aqui fez mais concessões do que outra coisa.

José Serra, o tucano graduado do Ministério, é um quadro experiente e preparado, mas sua personalidade não é muito compatível com a tradição diplomática brasileira. Hoje, é um dos candidatos a 2018, como Meirelles, Joaquim Barbosa e José Eduardo Cardozo.

Serão dois longos anos até a volta à normalidade, com as eleições de 2018. Boa viagem.


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