Folha de S. Paulo


Leia resenha do terceiro livro da série de Elio Gaspari sobre a ditadura

Apu Gomes/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 24-07-2014, 14h00: CONGRESSO ABRAJI. O jornalista Elio Gaspari recebe homenagem no 9 Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizado do dia 24 a 26 de julho, no Campus Vila Olimpia da Universidade Anhembi Morumbi, na zona sul de Sao Paulo. (Foto: Apu Gomes/Folhapress, Cotidiano ) *** EXCLUSIVO***

"A Ditadura Derrotada", terceiro livro da série do jornalista Elio Gaspari sobre o regime militar (1964-85), foi lançado em 2003, um ano após os dois primeiros volumes.

O livro revelou uma conversa na qual o ex-presidente Ernesto Geisel (1907-1996) admite, um mês antes de assumir a Presidência, em fevereiro de 1974, que a morte de opositores do regime era aceitável.

Leia abaixo a resenha escrita pelo jornalista Plínio Fraga, publicada pela Folha na ocasião do lançamento do livro, em novembro de 2003.

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Gravações revelam bastidores da repressão

Em "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada", a narrativa do jornalista Elio Gaspari para o nascimento, a consolidação e o endurecimento do regime militar de 1964 surpreendia por sua capacidade de relacionar o que se dizia nos palácios com o que se vivia nos porões. Saiu daí um painel sem precedentes na historiografia acadêmica ou jornalística sobre o período que o país foi comandado das casernas.

"A Ditadura Derrotada", o terceiro volume da série sobre o ciclo militar "As Ilusões Armadas", que chega hoje às livrarias, revela as vozes dos senhores do regime, que falam coisas de assustar, como demonstra a seguinte conversa gravada de Ernesto Geisel (1907-1996), em 16 de fevereiro de 1974, um mês antes de assumir a Presidência da República.

"Acho que a subversão não acabou. Isso é um vírus danado que não há antibiótico que liquide com facilidade. Está amainado. Está resolvido. Você vê, de vez em quando, há uma articulação, morre gente ou é gente presa, ele continua a se movimentar", afirma Geisel para o general Dale Coutinho, na conversa em que lhe faz o convite para que se torne o titular do Ministério do Exército em seu governo.

"O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar", afirma o então futuro ministro. É complementado pelo futuro presidente da República.

"Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora (...). Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser."

No diálogo com o general, Geisel cita que, semanas antes, foi "pego e liquidado" Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, líder da guerrilha do Araguaia, na qual grupos de esquerda armados atuaram contra o regime até meados daquele ano.

"Nós não podemos largar essa guerra. Infelizmente nós vamos ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar [algum ou novo, a gravação fica inaudível] processo, vamos ter que repensar...", afirma Geisel.

Não há registro histórico dessa proporção. As duas mais altas autoridades brasileiras à época afirmando que o Estado brasileiro matou opositores que estavam sob sua custódia. Afirmando em alto e bom som.

É o caso, por exemplo, de Osvaldão, que foi capturado pelas forças repressivas do Exército e assassinado, como reconhece Geisel nas gravações.

O diálogo que o livro de Gaspari —colunista da Folha e de "O Globo"— reproduz se origina de 222 horas de gravação de conversas de Geisel e assessores, feitas entre outubro de 1973 e março de 1974, sob a coordenação de Heitor Aquino Ferreira, seu secretário particular.

Os 70 rolos em cassete, depois convertidos para CDs, fazem parte do arquivo de Golbery do Couto Silva (1911-1987) e Heitor Ferreira, ao lado de mais de 5.000 documentos e de um diário de 1.500 páginas com minuciosas anotações do cotidiano do poder.

As transcrições só vêm a público graças à inspiração de um precedente americano, as transcrições das conversas dos presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson, que foram tema do livro do historiador Timothy Naftali.

Ferreira cedera as gravações a Gaspari em 1985, com o compromisso de que não pudessem ser transcritas. Com o precedente, Ferreira permitiu que fossem citadas livremente, desde que preservada a vida particular dos outros.

As conversas foram gravadas numa residência do Jardim Botânico e em um escritório do Largo da Misericórdia, no Rio, pertencentes ao Ministério da Agricultura na época. Eram captadas por um microfone, que transmitia por frequência modulada para um gravador Philips 85. Algumas conversas telefônicas também foram captadas, por meio de uma chupeta acoplada ao aparelho.

Mas o livro de Gaspari não se restringe à transcrição das fitas. É a continuação do desvendamento das ações e das razões que levaram Geisel (batizado de "O Sacerdote") e Golbery ("O Feiticeiro") de participantes do golpe que implantou a ditadura militar a ativos desmontadores da estrutura então dita como revolucionária.

No livro fica claro que é obra do governo Geisel o recurso ao "desaparecimento" para eliminar a necessidade de justificativas para a morte de contestadores do regime militar. De 1964 a 1970, os "desaparecidos" somam nove, e os mortos com cadáver são 87, contabiliza Gaspari. Em 74, há 52 mortos e 52 "desaparecidos".

O jornalista então disseca a palavra: "Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres sumiam sem ficar vestígio. Resultava da conjugação da política de extermínio com a clandestinidade do porão", define.

"Clandestinidade, no caso, não significava paralelismo, autonomia ou descontrole. Os assassinatos eram praticados pela máquina do Estado, com beneplácito da hierarquia. Eram clandestinos, porque, dentro dela, ocultavam-se", conclui Gaspari.

Para comprovar sua tese, como nos dois volumes que precederam a publicação de "A Ditadura Derrotada", mais de 1.500 notas biográficas trazem a fonte da informação. No caso do Araguaia, um documento do SNI (Serviço Nacional de Informações), intitulado "Apreciação Sumária" e que foi encaminhado a Geisel, o texto é claro. Com o fim do período das chuvas na região do Pará, recomeçariam as operações "visando à destruição dos elementos que ainda se encontram na região".

"A Ditadura Derrotada" começa com as articulações surgidas a partir de junho de 1971, quando, em um bilhete cifrado, revela que o "Alemão", apelido de Ernesto Geisel, seria o presidente a sucedê-lo em 1974.

O volume narra os bastidores do poder durante os três anos e cinco meses que se seguem até a eleição para o Senado em 1974, quando a oposição vence e surpreende os militares.

A Ditadura Derrotada (Vol. 3)
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Gaspari afirma que ouviu críticas que diziam que seus dois livros anteriores não tinham "povo". Ele concorda e explica por quê: o "povo" só dá as caras nessa eleição em que a oposição venceu a disputa para o Senado nos principais centros urbanos.

"Que esperar de um eleitorado assim, um povinho assim", perguntou Heitor Aquino a Golbery. "Que melhore, praticando. O povo não está com a revolução", respondeu Golbery.

Gaspari faz ainda uma reconstrução da trajetória pessoal e dos interesses e hábitos de Geisel e Golbery.

No caso de Geisel, cita a morte de um filho, atropelado por um trem, como separador de águas em sua vida. Escreve Gaspari: "A educação austera, a disciplina da caserna e seu temperamento fizeram-no um retraído, mas a desgraça abateu-o a ponto de ele dizer, 30 anos depois, que 'ao longo de minha vida eu fui um infeliz'. A um amigo que passou por experiência semelhante, confessou: 'É uma dor que não acaba'. Nunca fora um lúdico, mas em 1957 perdeu até a capacidade de esperar que a vida lhe desse alegrias. Os dias festivos transformaram-se em jornadas de sofrimento, queria que se esquecesse o Natal, 'porque minha família não está completa'."


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