Folha de S. Paulo


Análise

Votação revela mais sobre eleitores do que sobre deputados

O Datafolha nem precisou tabular –menções a Deus e à família dominaram ostensivamente a votação pela abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados no último domingo (17).

Despreocupados em alimentar a propaganda governista sobre golpe de Estado, já que os dois temas, associados à liberdade, pautaram marchas por ações anticomunistas ao longo de março de 1964, ou em chocar determinados segmentos sociais, os parlamentares tentavam adequar o discurso ao perfil do eleitor.

O brasileiro tende a ser mais conservador em códigos morais do que deputados e senadores. Pesquisa do Datafolha sobre o posicionamento ideológico da população em contraste com o dos parlamentares, realizadas em 2014 e 2015, traziam contrastes importantes.

O cidadão tende à direita em variáveis de comportamento –55% contra 17% entre os parlamentares– e à esquerda em aspectos econômicos –43% contra 32%. O Congresso fica mais à esquerda em valores e mais à direita economicamente.

Na matriz de frases que gera essa classificação, os dois universos concordam majoritariamente com a frase "Acreditar em Deus torna as pessoas melhores", mas a opinião é muito mais frequente entre representados (86%) do que entre representantes (67%), mesmo com a participação de evangélicos entre os congressistas ser o dobro da observada na população de um modo geral.

Em alguns estratos da população, como os menos escolarizados e de menor renda, a fé alcança quase a totalidade do segmento. A conclusão justifica a ironia do pedido de Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara, réu na Lava Jato, antes de revelar seu voto: "Que Deus tenha misericórdia desta nação".

Ao citarem a família, mesmo na confusão entre as esferas pública e privada, tão presente nas raízes da história política brasileira, os deputados mais uma vez foram eficientes na comunicação –nenhuma outra instituição é tão valorizada no país.

Família supera estudo, religião e trabalho. Nos dossiês que o Datafolha produziu sobre o tema, a taxa de importância máxima atribuída ao tópico cresceu 25 pontos percentuais em 18 anos, enquanto outras instituições tradicionais, como trabalho e religião, não evoluíram tanto.

Mesmo em segmentos que geralmente apresentam contrastes, como os jovens, o assunto ganhou espaço.

Entre os que tinham 16 e 24 anos em 2008, por exemplo, 82% consideravam a família como algo muito importante para suas vidas, taxa que subiu para 87% em 2015.

Como parâmetro para a relevância desse resultado, o valor atribuído pelo estrato a sexo e beleza física despencaram 16 e 13 pontos no mesmo período, respectivamente. Sob esse aspecto, faz todo sentido o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) querer que seu filho votasse por ele.

Em um dos capítulos da última temporada de "House of Cards", o protagonista, o presidente americano Francis Underwood, dispara: "...mas a política deixou de ser só teatro, é puro entretenimento".

Para os dez segundos de fama a serem utilizados na propaganda eleitoral e garantir o show, os deputados escolheram o personagem mais adaptado à realidade da plateia, anulando, por tempo breve, a crise de representação que marca o país.

Por sua autenticidade, o conflito entre Jean Willys e Jair Bolsonaro torna-se, por incrível que pareça, um símbolo mais honesto do cenário político brasileiro.

RELIGIÃO - Acreditar em Deus... (% dos que responderam)

FAMÍLIA - Grau de importância da família (% da população)


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