Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Longa 'Que Horas Ela Volta?' retrata Brasil pré-crise política

Se a pesquisa de opinião pública é um retrato do momento e sua evolução ao longo do tempo conta a história de um fenômeno social, o cinema, em seu simbolismo dramático, produz por vezes ensaios sociológicos relevantes. Um exemplo é "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert.

O longa, indicado para concorrer a vaga no Oscar 2016, captura vetores que dividiram o país nas eleições presidenciais de 2014 e que regam agora as manifestações contra o governo e a crise política. A conjuntura está embalada nas tensas relações de classe entre os personagens da obra.

Estão contemplados, de um lado, os "filhos da inclusão" da era Lula, a classe média intermediária que ascendeu pelo acesso à educação, representada por Jéssica, filha da empregada doméstica que sai do Nordeste para prestar vestibular em São Paulo.

Do outro, a elite da capital paulista, que sob alegoria cordial e modernosa, revela-se conservadora e refratária às mudanças (casal de patrões e o filho, Fabinho).

Entre os dois, fica a mãe de Jéssica, Val, também babá de Fabinho, símbolo do precário equilíbrio entre esses mundos. As esferas privada e pública se confundem num jogo de articulação política no qual os marcadores do preconceito de classe são colocados em xeque assim que as mudanças do país se materializam na figura da jovem, que não via a mãe havia dez anos.

Nesses mesmos dez anos, a classe média intermediária superou todos os estratos socioeconômicos, representando hoje um terço da população brasileira. Metade dos jovens do país pertence a esse conjunto e entre eles, nesse período, o nível superior de escolaridade dobrou de apenas 8%, em 2005, para 17% hoje.

Não à toa, a casa grande se surpreende com o grau de informação da menina pobre criada longe da mãe.

E com o potencial de uma nova formadora de opinião, choca e influencia Val ao flertar com os padrões de consumo e cultura da elite. Recusa a senzala (quartinho dos fundos), prefere sorvete gourmetizado, quer a USP, troca ideias com o dono da casa e ousa se divertir na piscina da família.

Mas o filme é pré-crise e seu desfecho talvez fosse diferente caso acontecesse hoje. Apesar de manter nebuloso o futuro de Jéssica, os desafios que ainda a esperavam na ficção seriam muito maiores na realidade do Brasil rebaixado. Como evidenciado por pesquisas do Datafolha, ela pertence ao grupo que mais sofre reflexos da crise.

Isso acontece também com a classe alta, do casal que se sente patrocinador das mudanças de um país com o qual não se identifica. A essência da revolta das recentes manifestações contra o governo federal tem presença forte no longa, mas de maneira velada, com todas as panelas passando ainda apenas pelas mãos de Val.

Sob esse contexto, se Dilma já foi a "mãe do PAC", segundo definição de Lula e absorvida por seus eleitores, uma possível sequência para o filme significa responder a pergunta que ele propõe: "que horas ela volta?".

Evolução das classes socioeconômicas no Brasil


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