Folha de S. Paulo


Análise

Dilma conseguirá sobreviver à crise?

Adriano Machado - 20.ago.15/Reuters
A presidente Dilma Rousseff durante evento em Brasília
A presidente Dilma Rousseff durante evento em Brasília

Se ver centenas de milhares de brasileiros nas ruas exigindo seu impeachment em 16 de agosto perturbou a presidente Dilma Rousseff, ela não deixou transparecer. Naquela noite, ela consultou cinco dos ministros mais próximos a ela para discutir como o governo deveria reagir. Eles decidiram seguir uma estratégia simples: não responder.

Embora seja possível argumentar que não havia mesmo coisa alguma a dizer, o silêncio também é um traço característico de Rousseff, ex-guerrilheira marxista que se tornou a primeira mulher a presidir seu país. "Ela confia em muito pouca gente", disse o repórter e blogueiro político brasileiro Mauricio Savarese. "Controla seu governo como uma célula comunista".

Isso provou ser tanto um ponto forte quanto um ponto fraco na colorida carreira que a levou do ativismo estudantil e do trabalho como tecnocrata à liderança da sétima maior economia do planeta. Nos anos 70, Rousseff foi presa e torturada durante a ditadura militar sem revelar os nomes de seus companheiros no submundo marxista.

Hoje, no entanto, essa falta de interesse pelo diálogo e pela construção de alianças é vista por muitos como fator chave em uma crise política que a viu se tornar o presidente mais impopular desde o retorno da democracia em 1985.

Menos de um ano depois de iniciado seu segundo mandato, a presidente luta com uma coalizão estilhaçada, uma economia em desaceleração e o maior escândalo de corrupção na história do país. Hostilidade vinda das famílias ricas, brancas e de classe média era de esperar, mas Dilma também decepcionou muitos daqueles que a colocaram no poder.

Seu predecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, construiu uma ampla coalizão que abarcava sindicatos, estudantes radicais, ambientalistas e muita gente da classe média. O governo dele era idealista e pró-ativo quanto à mudança no clima, o desflorestamento e a política externa, e pragmático em sua abordagem econômica.

Mas sob Dilma, o Partido dos Trabalhadores perdeu o lustro. Diplomatas admitem, falando em off, que a presidente tem pouco interesse pela política externa. Os ambientalistas atacam sua aprovação de um código florestal enfraquecido, a construção de represas na Amazônia e o desenvolvimento dos combustíveis fósseis pela Petrobras.

Antes de sua primeira campanha presidencial, em 2010, Dilma jamais havia disputado um cargo eletivo. Em forte contraste com Lula, ela não é uma pessoa calorosa. Depois de uma cirurgia plástica para abrandar sua aparência, em 2008, a pergunta que circulava amplamente como piada era quando ela faria uma cirurgia de mudança de personalidade. Renomada por sua agressiva interferência nos detalhes da administração, ela não costuma escutar nem mesmo os seus ministros.

"Ela não gosta de políticos. É uma tecnocrata", disse Savarese.

O avesso da moeda, com relação à sua personalidade abrasiva, é uma sólida reputação de honestidade. Nem mesmo seus inimigos a acusam de corrupção.

Em recente entrevista à revista alemã "Capital", o ex-presidente Fernando Henrique, do partido oposicionista PSDB, a descreveu como "honrada". Em sua presidência, os procuradores federais revelaram mais delitos do que em qualquer momento do passado.

Mas sua determinação de não se envolver com o clube de rapazes da política do Brasil, país no qual menos de 9% dos legisladores são mulheres e a corrupção é rotineira, explica em parte os seus atuais problemas.

EDUARDO CUNHA

Como ministra das Minas e Energia na presidência de Lula, ela não conseguia esconder seu desapreço por Eduardo Cunha, então um ambicioso deputado com interesse no setor de energia. Durante sua primeira posse, ela violou o protocolo ao deixar o Congresso pela mesma porta usada na entrada, simplesmente para evitar apertar a mão de Cunha, que a esperava na saída.

Cunha, hoje presidente da Câmara, parece não ter esquecido nem perdoado o insulto. A despeito de pertencer a um partido nominalmente aliado ao de Dilma, ele disputou a presidência da Câmara contra um candidato aprovado pela presidente, e ganhou.

Desde então, Cunha vem provando ser o espinho mais aguçado na carne de Dilma. As tentativas dela de conter gastos e elevar impostos para resolver os problemas das finanças públicas foram bloqueadas por um Congresso hostil, em manobras orquestradas por Cunha.

Além disso, levar processos de impeachment contra ela a votação é prerrogativa exclusiva do presidente da Câmara.

Mas na quinta-feira, a Procuradoria-Geral da República apresentou denúncias por suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro contra Cunha, relacionadas a uma propina de US$ 5 milhões que ele teria supostamente recebido como parte do escândalo da Petrobras.

"Isso propiciou alguma folga a ela", disse David Fleischer, professor de ciências políticas na Universidade de Brasília. "O papel de Cunha foi de alguma forma enfraquecido. Mas é claro que isso pode enraivecê-lo a ponto de decidir derrubar a presidente. Não há como saber de que maneira ele reagirá".

FAMÍLIA

Ao longo da crise, ela vem confiando em apenas alguns assessores próximos, entre os quais seu ex-marido, Carlos Araújo.

Dilma e Araújo se conheceram quando os dois eram militantes ativos em grupos de esquerda, no final dos anos 60. Os dois foram presos e torturados. Depois do retorno da democracia, eles se radicaram na cidade de Porto Alegre (RS), onde Araújo, advogado trabalhista, ajudou a fundar o Partido Democrático dos Trabalhadores (PDT).

O casal teve uma filha, Paula, nascida em 1976; eles se separaram em 2000, mas continuam próximos. De acordo com Rosane de Oliveira do jornal "Zero Hora", que conhece Dilma desde a metade dos anos 80, Araújo é uma das poucas pessoas em quem ela confia e cujos conselhos aceita.

Dilma retorna regularmente a Porto Alegre. A família é uma das poucas formas de relaxamento que encontra, especialmente assistir a desenhos animados da porquinha Peppa com seu neto Gabriel, ainda que ela já tenha dito a entrevistadores que seus filmes favoritos incluem "2001: Uma Odisseia no Espaço" e "Mimi, o Metalúrgico".

Na semana que precedeu as manifestações, Araújo viajou a Brasília para fazer companhia a Dilma. De volta a Porto Alegre na semana passada, ele disse a Oliveira que de maneira alguma Dilma consideraria renunciar. "Lembre-se de que ela foi torturada e jamais traiu os companheiros", disse Oliveira.

A presidente já surpreendeu os detratores no passado. Ela foi uma escolha controversa para a sucessão de Lula, mas inicialmente provou ser um sucesso junto ao eleitorado, vencendo com facilidade em 2010 e depois aproveitando o boom econômico e a política de redistribuição de riqueza que promoveu para atingir índices de aprovação de 80%.

SEM APOIO

A subsequente desaceleração na economia erodiu essa vantagem, mas Dilma ainda assim conseguiu sobreviver aos protestos de rua de 2013 e às vaias dos torcedores da Copa do Mundo no ano seguinte para garantir a reeleição em 2014. Em retrospecto, talvez tivesse sido melhor perder a eleição.

Desprovida de apoio legislativo, Dilma aceitou sucessivos compromissos, adotando uma política de austeridade para aplacar os mercados e convidando diversos inimigos ideológicos para seu ministério. Ela não tinha muita escolha, mas os resultados não satisfizeram a pessoa alguma, e causaram indignação a muitos.

Frei Betto, um monge dominicano de esquerda que cresceu na mesma rua que a presidente, em Belo Horizonte, trabalhou com ela contra o governo militar, durante a ditadura. Ele agora está alarmado com a possibilidade de que o abandono de seus princípios por Dilma tenha sérias consequências.

"Minha maior preocupação é que o aperto fiscal não funcione e o povo seja sacrificado. Isso causaria uma perda total de credibilidade para ela e para o PT."

Parte do problema é o estilo de liderança dela, disse Frei Betto. Ainda que ouça ideias alternativas, Dilma raramente se envolve em debates e costuma ignorar os conselhos.

"Ela é a pessoa errada para um sistema que exige outro tipo de presidente", diz Ricardo Sennes, do influente instituto de pesquisa Gacint-USP.

CRISE

Ele traça as origens da atual crise brasileira - a desaceleração da economia, o escândalo de corrupção da Operação Lava Jato e o Congresso desgovernado - a 2011/2012, quando a coalizão criada por Lula começou a se desmontar com a saída do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Desde então, os aliados vem deixando constantemente o campo do governo.

Sennes acredita que o resultado não seja polarização, mas fragmentação. "Ninguém tem maioria e todo mundo está bloqueando todo mundo mais. Creio que isso persistirá até 2018, porque não existe maioria nem para remover Dilma".

Se ele estiver certo, Dilma e o Brasil terão de tocar o barco. As alternativas - renúncia, impeachment ou golpe - provavelmente seriam piores.

O dilema parece ter sido reconhecido pelos líderes empresariais e pela grande mídia, que recentemente começaram a atenuar seus apelos pela derrubada da presidente por medo de que o país perca sua classificação de crédito em grau investimento.

A ironia disso talvez não escape a Dilma, que talvez esteja desejando nunca ter conquistado um segundo mandato - não que ela um dia possa vir a revelar esse tipo de pensamento.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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