Folha de S. Paulo


Para Elbrick, sequestradores eram 'fanáticos inteligentes'

Acervo UH - 8.set.1969/Folhapress
Charles Elbrick concede entrevista coletiva na embaixada dos EUA no Rio, em 1969
Charles Elbrick concede entrevista coletiva na embaixada dos EUA no Rio, em 1969

Em um depoimento de 23 páginas, o então embaixador norte-americano no Brasil Charles Burke Elbrick (1908-1983), sequestrado em 1969 por militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MR-8 que atuavam na luta armada contra a ditadura militar, dá demonstrações inequívocas de simpatia por aqueles que o mantiveram em cativeiro por três dias.

O depoimento em inglês, batido à máquina e mantido com selo de "secreto" até 20 de abril deste ano, integra um lote de documentos inéditos compartilhado na semana passada pelo governo dos Estados Unidos com o Brasil durante a visita da presidente Dilma Rousseff à Casa Branca.

O sequestro do embaixador resultou na liberação de 15 presos políticos de esquerda. Em razão disso, o episódio é tido por historiadores como o maior feito da guerrilha armada urbana que combatia o regime militar.

Acesse o depoimento (em inglês, sem data) de Charles Burke Elbrick sobre seu período no cativeiro após ser sequestrado

No relato sobre o cárcere, Elbrick afirmou ter dito aos sequestradores "deplorar qualquer tipo de violência". "Eles disseram pensar não haver esperança de solucionar problemas de forma pacífica neste país", contou.
O diplomata citou diversas conversas com os "jovens", "fanáticos inteligentes", que o capturaram em setembro de 1969.

Em um desses diálogos, disse imaginar que ações armadas deveriam fazê-los perder pessoas do grupo. Ao que escutou: "Para cada um que a gente perde, ganhamos cem".

Elbrick contou ter sido raptado em uma rua curta que conectava as ruas São Clemente e Voluntários da Pátria, no Rio, por volta das 15h do dia 4 de setembro de 1969. O carro que o levava foi interceptado por um Fusca azul, que trancou a passagem. "O motorista, é claro, parou o carro [com o embaixador]. E nesse momento várias pessoas com revólveres e pistolas cercaram o carro e abriram as portas. Dois deles tomaram o banco de trás comigo e dois deles entraram no banco dianteiro, colocando o motorista no meio deles", narrou Elbrick.

"Os dois [sequestradores] no banco de trás me forçaram a ficar no piso do carro com as minhas mãos atrás da cabeça e disseram 'Somos revolucionários brasileiros'", descreveu o embaixador.

Após rodar alguns minutos, o carro estacionou em uma "área deserta". E então disseram ao embaixador para "fechar seus olhos".

"Bem, eu não sei o que eles tinham em mente e eu não fechei meus olhos. E eu comecei a resistir e lutar com um homem e forcei seu revólver para longe de mim quando então fui atingido na cabeça com o cabo de uma pistola. E fiquei atordoado e claro que eu estava sangrando consideravelmente e naquele momento me puxaram para fora do Cadillac", contou Elbrick, no que parece ter sido o momento mais tenso do sequestro.

O embaixador foi colocado em outro veículo, que teria rodado cerca de 25 minutos até parar numa garagem. Os homens disseram para Elbrick caminhar e não olhar para os lados, caso contrário seria morto. Chegara ao local do seu cativeiro.

O americano foi questionado por um interlocutor não identificado no documento, que tomava o seu depoimento, sobre quantas pessoas estavam envolvidas na operação. Ele calculou em número de oito, mas alegou não poder reconhecê-los.

Divulgação - 1969
Guerrilheiros trocados pelo embaixador Elbrick; José Dirceu é o segundo em pé, da esq. para a dir.
Guerrilheiros trocados pelo embaixador Elbrick; José Dirceu é o segundo em pé, da esq. para a dir.

O interrogador (não fica claro se brasileiro ou americano) insistiu muito por detalhes dos sequestradores. Quis saber sobre traços dos olhos, cabelos e até das sobrancelhas. Mas todas as tentativas foram em vão. Elbrick disse não ter meios de identificar nenhum deles. O uso de máscaras dificultava, argumentou ele.

"Haveria alguma coisa não usual sobre olhos, o nariz e o cabelo, porções expostas que possam dar uma ideia da pessoa, ou da voz?", questiona o investigador.

"Bem, não sei, mas é difícil dizer, mas eu não, eu não me lembro de nada muito especial sobre ninguém", disse o embaixador.

"Eles eram inteligentes. Eu os classificaria de fanáticos inteligentes. Eles são dedicados, de acordo com o que me disseram, eram dedicados à revolução e me disseram que mesmo que demorasse 10, 20 ou 30 anos, a revolução iria ocorrer no Brasil", disse Elbrick.

O embaixador pediu coisas para ler no cativeiro. Foi informado de que não poderia receber jornais. Chegaram às suas mãos algumas revistas e um livro em inglês chamado "Ho Chi Minh sobre a Revolução", sobre o líder vietnamita.

Os militantes disseram a Elbrick que eram "revolucionários" e defendiam "reformas políticas e sociais".

"Creio que isso não é novidade para ninguém, mas ao mesmo tempo eu fiquei impressionado pela dedicação deles, a disciplina, a aparente disciplina e habilidade. Agora essas pessoas estavam envolvidas em assaltos a banco e em várias coisas que você pode ler na imprensa", disse o embaixador.

As horas passaram no cativeiro em meio a conversas sobre assaltos e perspectivas de futuro. "A comida não era a melhor mas eles se desculparam", contou o embaixador.

No dia 7, Elbrick foi solto após a troca de reféns. Ele foi levado de olhos vendados a um carro que lhe pareceu um Fusca. Rodou por cerca de 15 minutos, até receber a ordem de sair do carro. Ele caminhou até a rua Conde do Bonfim e pegou um táxi, enfim em liberdade.


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