Folha de S. Paulo


Tancredo Neves previa gastar toda sua popularidade em três meses

Despenteado nos fios que lhe restavam, Tancredo Neves saudava a multidão nas ruas de Belém. Estava em pé no Cadillac conversível preto, com estofamento em couro branco. O carro norte-americano, modelo 1950, raríssimo, pertencia ao governo do Pará havia 34 anos.

Representava poder, nostalgia, decadência e, naquele momento, novos ventos. Em dias do Círio de Nazaré, o comício e a passagem do candidato do PMDB à Presidência de República exibiram fervor comparável ao da maior festa religiosa do Norte do país.

Em outubro de 1984, a campanha para presidente estava a três meses de ser decidida no Colégio Eleitoral. Só votavam delegados estaduais, deputados e senadores. Os partidários de Tancredo aproveitaram o entusiasmo que a frustrada campanha pelas eleições diretas havia deixado. Fizeram comícios como se disputassem a Presidência pelo voto direto.

Após cinco quilômetros em pé, Tancredo recostou-se no banco de couro, com o apoio do neto e secretário particular. "O senhor imaginaria chegar aqui com toda essa popularidade?", perguntou Aécio Neves. "Vou gastar todo o crédito em três meses, pode acreditar", respondeu Tancredo, resignado. Planejava medidas que sabia que seriam impopulares. Previa dias amargos à frente.

VAIDADE E ERROS MÉDICOS

Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo venceu o candidato governista Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Assumiria o cargo de presidente em 15 de março, mas foi internado na véspera da posse.

Tinha um tumor, que provocou infecções. O tratamento havia sido postergado com o receio de que a transição do regime militar para o civil fosse abortada. Vaidade e erros médicos contribuíram para sua morte, após 37 dias de dor, cirurgias e desenganos. Coube a José Sarney, o vice, concluir a transição democrática, que completa 30 anos neste domingo (15).

O governo de Tancredo seria diferente do que foi o de Sarney. É especulação dizer que melhor, apesar de Sarney ter concluído o mandato em 1990 com 67% de rejeição, de acordo com o Datafolha.

No campo político, assessores e aliados de Tancredo relatam que ele proporia uma Constituinte mais restrita, que retirasse o entulho autoritário da carta de 1967, mas de conclusão rápida. Não imaginava elaborar um texto constitucional integralmente novo, como ocorreu em 1987/1988. "Tancredo preferia seguir o exemplo de 1945. Reforma constitucional pontual e rápida", disse Pedro Simon, um dos amigos mais antigos.

No campo econômico, Tancredo rejeitava planos heterodoxos para o combate à inflação. Queria corrigir a defasagem salarial, sem dar ganhos reais aos trabalhadores. Rejeitou Olavo Setubal no Ministério da Fazenda para, ao nomear Francisco Dornelles, passar um recado.

"O ministro da Fazenda seria ele próprio. Com uma política ortodoxa, como ficou claro no primeiro pronunciamento, em que disse: é proibido gastar", afirmou Dornelles, sobrinho e braço de confiança de Tancredo.

O Brasil renegociava sua dívida externa com o FMI (Fundo Monetário Internacional) sob pressão dos americanos. Estava endividado e quebrado. Tancredo queria que a gestão Figueiredo concluísse o acordo possível com o FMI. Pretendia cumpri-lo. Os EUA queriam que o acordo fosse feito já com Tancredo, não mais com Figueiredo.

Eleito, Tancredo sofreu pressão direta do secretário de Estado, George P. Shultz, em encontro em Washington. Manipulando datas de sua agenda, driblou reunião com diretor-gerente do FMI para não ser obrigado a assumir compromissos. Não escapou.

"A conversa foi excepcional, porque os dois eram muito habilidosos. O interesse do secretário era diametralmente oposto ao do Tancredo. Em um momento, Tancredo chegou a aventar a hipótese da moratória: 'não quero jamais, mas pode chegar o momento que tenhamos de suspender os pagamentos'. Foi o que o Sarney acabou por fazer. Não posso garantir que não teria acontecido com Tancredo. Ele tinha uma noção mais clara do risco que representava a moratória. Daí a convicção de que Tancredo teria feito diferente", afirmou o embaixador Rubens Ricupero, que o assessorou na reunião, em fevereiro de 1985.

A TRANSIÇÃO

Os EUA guardavam temores de que os militares recuassem na transição para a democracia no Brasil. Não estavam tão certos da vitória de Tancredo entre setembro e outubro de 1984. Documentos reservados enviados a Washington apontavam o favoritismo da oposição. "Divisões nas forças políticas, no entanto, tornam um realinhamento possível", analisava o despacho americano.

O realinhamento poderia ser um novo candidato situacionista, substituindo Maluf e reagrupando quadros desgarrados da situação.

A dúvida sobre a possibilidade de recuo na transição foi dimensionada por meio da visita de um dos ícones da política externa americana. Henry Kissinger, ex-secretário de Estado, cumpria o papel de assessor internacional do presidente Ronald Reagan quando desembarcou no Brasil em setembro de 1984.

O presidente Figueiredo o recebeu numa suíte no hotel Ca'd'oro, no centro de São Paulo. A conversa durou uma hora e 40 minutos.

Documento confidencial inédito, com a transcrição dessa reunião de Kissinger com Figueiredo, em 21 de setembro, mostra como os EUA avaliavam os riscos de retrocesso na distensão.

O Departamento de Estado considerou que "Figueiredo foi surpreendente, contraditório e até mesmo chocante". O presidente disse que não demitiria ministros por apoiar Tancredo, chamava o peemedebista de moderado, mas tinha dúvidas se controlaria "seus radicais". Foi alarmista: "Uma intervenção militar terminaria em guerra civil".

Kissinger perguntou se "algo poderia acontecer antes ou mesmo depois da eleição, caso Tancredo vencesse". "Sim, depende do transcorrer dos fatos", respondeu Figueiredo. O brasileiro disse a Kissinger que, naquela data, Tancredo tinha mais chances de vencer. Maluf, acreditava, ainda estava no jogo porque era "inteligente e esperto".

Kissinger e Figueiredo estavam acompanhados de um intérprete, o advogado brasileiro Paulo Rollo, que prestava serviços de tradução e consultoria jurídica à embaixada norte-americana em Brasília. Por meio de suas anotações, é possível reconstituir momentos da conversa não registrados no despacho do Departamento de Estado.

Kissinger disse que seria muito difícil para os EUA continuarem a apoiar o ciclo militar após 21 anos no poder.

Figueiredo relatou problemas com os próprios radicais e ressaltou que havia reservas de comandos militares a Tancredo. Disse que estava disposto a se empenhar para que as restrições fossem superadas, sob certas condições. Kissinger perguntou quais.

O presidente elencou: Tancredo não podia se deixar dominar pela "corja" de esquerdistas e comunistas que o rodeava. Se eleito, deveria manter diálogo direto, franco e aberto com o governo militar. Abriu a possibilidade de um encontro com o ministro do Exército, Walter Pires. Sugeriu que as bandeiras vermelhas sumissem dos comícios.

Kissinger disse que Tancredo parecia ser sensato e hábil, interessado na volta da democracia. Perguntou se Figueiredo tinha alguma objeção de que os americanos fizessem essa informação chegar a Tancredo. Não havia objeção alguma, ouviu como resposta. Kissinger despediu-se. Disse que aprendera na carreira diplomática que nunca devia abusar do tempo valioso de um presidente.

Seis dias depois, em 27 de setembro, parlamentares ligados a Tancredo receberam um sumário da conversa entre Figueiredo e Kissinger. Certamente não foram as únicas indicações desse tipo a que o candidato teve acesso nem as responsáveis exclusivas pelo que se sucedeu.

As bandeiras vermelhas sumiram dos comícios, Tancredo se encontrou com Pires e reforçou o comprometimento em fazer um governo sem revanchismo contra militares.

Cumpriu a estratégia necessária e se tornou o presidente que mais fez pela redemocratização, mesmo sem ter sido empossado no cargo.

PLÍNIO FRAGA é jornalista. O texto é baseado em entrevistas e documentos recolhidos para biografia de Tancredo Neves que lançará pela editora Objetiva.

Editoria de Arte/Folhapress

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