Folha de S. Paulo


Opinião: Guerra Fria constitui o pano de fundo dos confrontos na América Latina

Sem que se entenda o contexto, a história perde sentido. O passado humano precisa ser entendido pelo seu momento histórico, não pelos preconceitos que vieram depois ou antes.

Em 2014 um relatório de uma "Comissão da Verdade" pretende ser o árbitro imparcial de fatos que aconteceram durante o regime militar no Brasil de 1964 a 1985. Mas não de todos os fatos; apenas os episódios terríveis criados por uma ditadura militar, mas não aqueles, igualmente lamentáveis, cometidos pelos opositores de esquerda do regime.

Faz diferença ser morto por tiro ou bomba ou tortura se o algoz usa camisa vermelha ou negra? Ou que a "direita" teria matado três ou quatro vezes mais que a "esquerda"?

É óbvio que a "direita" mataria mais. Tinham o aparelho de Estado nas mãos. Em outros países latino-americanos na mesma época mataram muito, muito mais.

Pode-se argumentar que o Estado moderno, com todo seu poder judicial, policial e militar, precisaria de controle da sociedade civil para impedir excessos, e por isso as mortes que provocou seriam "piores". Mas membros da sociedade civil também não deveriam se rebelar contra um Estado Democrático de Direito. Já contra um Estado de exceção, ditatorial, o "direito natural" teoricamente daria essa opção aos rebeldes.

O mundo e sua história infelizmente não são preto e branco. Há muitos tons de cinza. Em 1970, qual a diferença de cometer terrorismo e matar inocentes nas democráticas Itália e Alemanha, ou no ditatorial Brasil? Grupos de esquerda fizeram isso.

Militares tomaram o poder no Brasil em 1964 para, dizem, impedir um golpe da esquerda. Tanto faz se isso era factível então (não era). O que interessa é que a esquerda também fez a opção pela ditadura —a "do proletariado".

Nem comunistas nem fascistas, como mostra a história do século 20, queriam uma democracia liberal como a que hoje existe no país.

Contexto número um: militares e política. Basta ler um livro de quadrinhos de Tintim para perceber a imagem caricata da América Latina e seus golpes militares já nos anos 1930, com exércitos com mais coronéis do que sargentos... Em 30 anos, o equatoriano José M. Velasco Ibarra foi eleito cinco vezes e derrubado quatro vezes por golpes militares.

Mas não há contexto melhor para explicar os "anos de chumbo" no subcontinente do que a Guerra Fria entre o mundo capitalista liderado pelos EUA e o socialista liderado pela União Soviética.

Graças ao equilíbrio do terror criado pelas armas nucleares, EUA e URSS só podiam guerrear "por procuração". Um dos campos de batalha era a América Latina. Não havia guerras externas, convencionais; o "inimigo" era interno: a esquerda em todos os seus matizes.

Por mais que os latino-americanos gostem da ideia de ter "identidades" próprias, sua história tem muito em comum. Em 1979, de dez países latinos da América do Sul, só havia duas democracias (Venezuela e Colômbia). Em 1985, era o contrário —só havia duas ditaduras (Chile e Paraguai).


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