Folha de S. Paulo


Machismo, aborto e greve alimentam discussão filosófica em congresso

Em uma escola na periferia de Curitiba, o tema foi o machismo. Na zona norte do Rio de Janeiro, o aborto é que provocou o debate. Numa sala de aula em Sergipe, cenas de uma greve de policiais detonaram a discussão sobre o Estado e a repressão.

Entraram na roda Rousseau, Locke, Voltaire, Condorcet. Assim, juntando os clássicos com o cotidiano, estudantes de ensino médio estão começando a ter contato com a filosofia. As experiências foram contadas com entusiasmo por jovens professores durante o 16º Encontro nacional da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação de Filosofia), que se encerra nesta sexta (31) em Campos do Jordão.

"É o maior encontro de pesquisa de filosofia do mundo", declara Marcelo Carvalho, 44, presidente da Anpof. De fato, os dados do evento são amazônicos: 2.391 inscritos, 2.150 trabalhos apresentados, quase mil doutores em filosofia presentes. Um crescimento em torno de 18% em relação à última reunião, realizada em Curitiba em 2012.

O avanço numérico reflete a mudança provocada pela inclusão da filosofia na grade do ensino médio a partir de 2008. Houve um estímulo à carreira de professor na área. Com exceção de São Paulo, onde o governo estadual não quis cumprir a regra, cresce a oferta de vagas no mercado de trabalho.

Carvalho lembra que quando entrou na filosofia da USP, em 1988, as turmas de calouros somavam 120 estudantes. Mas a formatura, em 1992, só contou com quatro pessoas. "Isso não existe mais", diz. Em dez anos (de 2004 a 2014), os programas de graduação na área saltaram de 14 para 41 no Brasil, contabiliza ele.

Ao todo, o presidente da Anpof estima em torno de 130 mil o número de professores de filosofia no país, embora apenas 26 mil tenham formação específica na área. Lecionada no passado por padres e advogados –e de forma enciclopédica–, a filosofia deixou o currículo escolar durante a ditadura militar, que deu ênfase ao ensino técnico.

"Nos anos 1970, a filosofia se voltou muito para dentro da universidade. Tinha qualidade, mas era muito acadêmica", afirma. Agora, a volta às salas de aula provoca uma reviravolta no mundo dos profissionais da área, chegando a atrair estrangeiros.

Afinal, a crise econômica iniciada em 2008 afeta o ensino em várias partes do mundo. "Por causa dos cortes, a universidade na Europa está em processo de retração. A geração mais nova de filósofos não consegue se colocar", diz Carvalho.

TEMAS

Pelas salas do Centro de Convenções de Campos do Jordão e de hotéis das redondezas, a discussão atravessa temas variados da ética, psicanálise, estética, ciência e sobre os pensadores de diversos matizes.
A maioria folgada dos participantes é masculina (1.695) e originária da região Sudeste (1.125). Sul e Nordeste têm presença quase igual (549 e 495 filósofos respectivamente). Do Centro-Oeste vieram 142; são 58 os representantes do Norte.

A efervescência por aqui vem acompanhada de problemas. "Não temos qualidade compatível com essa quantidade", opina Carvalho, que é professor da Unifesp.

É um diagnóstico que preocupa também Eduardo Barra, 50, professor de filosofia da Universidade Federal do Paraná. Para ele, os números da educação brasileira revelam um quadro perturbador sobre a dimensão do desafio a enfrentar.

Um dos pontos cruciais é a questão da evasão escolar entre os adolescentes. "Temos 8 milhões de estudantes no ensino médio e 13 milhões no EJA (programa de Educação para Jovens Adultos)", lembra. Conter a saída precoce da escola é uma tarefa cotidiana dos mestres de filosofia que ele orienta.

Barra elogia a "retomada da tradição humanista no ensino médio", mas aponta as dificuldades em formar professores, produzir material didático e seduzir alunos para ler, interpretar e pensar com autonomia e espírito crítico.

Ao seu lado, Rejane Giacomassi, 57, fala dos avanços do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, uma espécie de "residência" para estimular jovens professore a inovar, discutir experiências e permanecer nas salas de aula.

Na ponta, convivendo com os adolescentes nas classes, Robson da Costa, 32, da UFPR, conta satisfeito o resultado do debate que reuniu machismo e Condorcet na escola Santa Gemma Galgani, no bairro de Abranches, em Curitiba.

"As piadas acabaram e, no final, um garoto de 15 desabafou: Sou machista e preciso mudar".


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