Folha de S. Paulo


Prisão domiciliar dá sensação de impunidade, diz Barroso

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, relator do processo do mensalão e responsável por liberar alguns dos réus do caso à prisão domiciliar, acredita que a falta de casa de albergado –para onde iriam os presos em regime aberto– gera uma sensação de impunidade pois os detentos passam a cumprir o final da pena em suas residências.

O ex-ministro José Dirceu está entre os condenados que foram liberados para terminar a pena de prisão em casa.

"Diante da progressão para o regime aberto [de prisão], o preso vai para prisão domiciliar, em razão da falta de casa de albergado. É isso que produz uma percepção negativa da sociedade", disse.

Em entrevista à Folha, o ministro discutiu a legislação brasileira, que permite uma rápida progressão nos regimes prisionais e disse que sociedade precisa fazer escolhas e definir áreas para seus investimentos. "Quanto de recursos deve ir para educação, para saúde, para transporte, para saneamento e, eis o ponto, para o sistema penitenciário", questionou.

Gustavo Epifanio/Folhapress
Barroso participa de debate promovido pela *Folha* com e pela FGV para discutir a lentidão do judiciário
Barroso participa de debate promovido pela Folha com e pela FGV para discutir a lentidão do judiciário

O ministro ainda comentou que, em sua avaliação, o sistema punitivo no Brasil foi feito para punir pobres. Segundo Barroso, do ponto de vista processual, o sistema é "caótico".

"Há poucos dias, julgamos um caso em que haviam sido apresentados 25 recursos. São cenas de terceiro-mundismo explícito".

Leia a seguir a entrevista:

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Como é possível que alguém condenado a 7 anos e 11 meses de prisão deixe a cadeia em menos de um ano?
O sistema funciona assim: condenações acima de 8 anos, inicia-se o cumprimento da pena em regime fechado; condenações entre 4 e 8 anos, o regime inicial é semiaberto; condenações inferiores a 4 anos, regime inicial aberto. Para passar de um regime a outro, exceto em casos de crimes hediondos e equiparados, é preciso cumprir 1/6 da pena e ter bom comportamento. Cada regime exige um tipo de estabelecimento: penitenciária, para o regime fechado; colônia agrícola ou industrial, para o regime semiaberto; e casa de albergado, para o regime aberto. O problema é que o país não tem, como regra geral, os estabelecimentos próprios, o que, em certos casos, acaba beneficiando os condenados.

A possibilidade de progressão de regime e de abater dias da pena é exagerada?
Se houvesse estabelecimentos adequados para os diferentes regimes de cumprimento de pena, isso não seria um problema. A possibilidade de progressão estimula o bom comportamento e a possibilidade de remição de dias estimula o trabalho e o estudo. Logo, são fatores positivos. A questão está em que, por exemplo, diante da progressão para o regime aberto, o preso vai para prisão domiciliar, em razão da falta de casa de albergado. É isso que produz uma percepção negativa da sociedade. Agora: nós estamos em uma democracia. Portanto, cabe à sociedade e aos seus representantes definir quanto do orçamento público o país quer investir em estabelecimentos de cumprimento de penas. Nós temos muitas carências e a alocação de recursos envolve escolhas trágicas: quanto de recursos deve ir para educação, para saúde, para transporte, para saneamento e, eis o ponto, para o sistema penitenciário.

Quando indeferiu a prisão domiciliar para José Genoino, o sr. disse que muitos em situação igual ou pior estavam internados no sistema. Para acelerar a progressão é preciso que o preso trabalhe, estude e leia livros. Mas tais oportunidades não seriam facilitadas somente para presos poderosos ou ricos?
A desigualdade que existe na sociedade brasileira se manifesta de forma muito visível no sistema penitenciário. Porém, ninguém deve ser condenado ou perseguido por ser rico ou culto, assim como ninguém deve ser condenado ou perseguido por ser pobre ou inculto. Um bom projeto de país consiste em elevar as condições de vida de quem não teve acesso e não, evidentemente, puxar para baixo quem teve. Esse igualitarismo às avessas não faria qualquer sentido. Não é injusto permitir que o trabalho, o estudo e a leitura deem direito de progressão ao preso. O que é injusto é que existam pessoas que não tenham condições de trabalhar, estudar ou ler. Mas esta culpa não é exclusiva do sistema de execuções penais.

O sr. acredita que a atual legislação cria uma sensação de impunidade na sociedade, uma vez que ela recebe notícias de presos que chegam a ser esquecidos nas cadeias após o cumprimento de suas penas, e outros que, mesmo condenados a quase oito anos de prisão, deixam a cela em menos de um ano?
Acredito. Por essa razão, aceitei dar essa entrevista. Para que as pessoas tenham informação e compreensão do sistema, formem uma opinião esclarecida e contribuam para o debate público e as escolhas políticas a serem feitas. Nas sociedades plurais e complexas, não existem escolhas juridicamente simples ou moralmente baratas. Tudo tem um preço, um custo. É a sociedade que tem de definir quanto ela pode e quer gastar com o sistema prisional, a defensoria pública, com assistência social etc. E ter, sobretudo, a visão clara de que a lei vale para todos, com o máximo de igualdade possível. Eu não posso deixar de dar prisão domiciliar a quem tem direito, porque uma grande quantidade de pessoas não gosta particularmente de um condenado. É para isso que existem juízes constitucionais: para fazer o que é correto e justo, mesmo onde exista ódio.

Como senhor não trabalhava com o direito penal antes de ir para o STF, qual a sua visão do sistema punitivo brasileiro?
Minha visão é extremamente crítica. Do ponto de vista filosófico, é um sistema de classes, feito para punir pobres. É muito mais fácil condenar um jovem de 18 anos, por estar com 100 gramas de maconha, do que um agente público ou um empresário que cometa uma fraude de um milhão de reais. Do ponto de vista processual, o sistema é caótico. Há poucos dias, julgamos um caso em que haviam sido apresentados 25 recursos. São cenas de terceiro-mundismo explícito.

Tem alguma sugestão?
Acho que estamos chegando a um momento de amadurecimento da democracia brasileira, com maior participação e consciência cívica. Estamos questionando e refletindo sobre muitas coisas. É preciso incluir, nessa lista, uma ampla reflexão filosófica e normativa sobre o sistema punitivo. Quanto de direito penal? Para quem o direito penal? E adequar as normas à nova criminalidade existente e às demandas de celeridade da sociedade. Celeridade, com devido processo legal, por evidente. Há uma medida justa, que não importa em cerceamento de defesa nem em procrastinação injustificada.

O senhor entrou no meio do julgamento do Mensalão e, por sorteio, tornou-se o relator do caso. Qual a sua avaliação?
Na minha sabatina no Senado, eu me referi ao julgamento da Ação Penal 470 como "um ponto fora da curva". Isso, por duas razões: pessoas que normalmente ficam fora do alcance do direito penal foram punidas; e o STF foi relativamente duro na aplicação das penas, atendendo a uma demanda generalizada da sociedade brasileira. O julgamento foi um bom símbolo contra a impunidade: 24 pessoas da elite política e empresarial foram condenadas. Mas, como disse no julgamento, se não mudarmos o sistema político, o esforço terá sido em vão. O sistema eleitoral e partidário brasileiro é indutor da criminalidade.


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