Folha de S. Paulo


Índios reagem a decisão do STF que ameaça demarcação de terras

Um grupo indígena guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul, protestou na tarde desta quarta-feira (15) na frente do STF (Supremo Tribunal Federal) e distribuiu cartas aos ministros contra uma decisão que poderá, com uma reação em cadeia, provocar o congelamento ou gerar a nulidade de processos de demarcação de terras indígenas identificadas e reconhecidas pela Funai (Fundação Nacional do Índio).

Os índios montaram um acampamento e pretendem passar a noite "em vigília" em frente ao tribunal.

Segundo a decisão, tomada por três votos a um na 2ª Turma do Supremo e ainda não confirmada em plenário, os índios que reivindicam uma terra indígena no município de Caarapó (MS) não teriam mais o direito de lutar judicialmente pela posse da terra porque não estavam no local antes de 1988, quando a Constituição foi promulgada e previu um prazo de cinco anos para a União fazer a demarcação de todas as terras indígenas no país.

Os índios, porém, afirmam que não estavam na terra naquele ano porque foram alvo de um longo processo de expulsão de suas terras tradicionais, que contou com a participação do Estado brasileiro, ao criar, na década de 10, apenas oito reservas indígenas destinadas aos índios kaiowás, agrupando-os para liberar suas terras para projetos de colonização e agropecuária no então sul de Mato Grosso.

"Os ministros estão desconsiderando toda a violência que os índios sofreram em 70 anos e que por isso tiveram que abandonar suas terras", disse o advogado Adelar Cupsinski, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que já protocolou no STF um pedido de nulidade da decisão, pois teria contrariado outras decisões anteriores do mesmo STF no sentido oposto.

Os indígenas temem que a decisão do Supremo inviabilize a demarcação de outras terras reivindicadas pelos guaranis, como a de Kurusu Ambá, no município de Coronel Sapucaia (MS), na fronteira do Brasil com o Paraguai. O líder do grupo que luta por essa demarcação, Eliseu Lopes, afirmou que há constantes ameaças de "pistoleiros", com tiros à noite e o incêndio de barracos erguidos pelos índios.

Eliseu disse que, desde 2007, onze índios já morreram na área de Kurusu, incluindo crianças por desnutrição.

BANCADA RURALISTA COMEMORA

A decisão do STF foi publicada nesta quarta no Diário Oficial e comemorada pela bancada ruralista da Câmara dos Deputados que, em nota, anunciou que "o STF derrota tese da Funai". "Dessa forma, mais uma vez a Funai saiu derrotada em sua intenção de demarcar terras indígenas a qualquer custo em todo o território brasileiro", diz a nota.

A decisão foi tomada em processo movido por um fazendeiro de Mato Grosso do Sul cuja propriedade tem limites que incidem sobre a terra reivindicada pelos índios denominada Guyraroká.

No primeiro momento, a tese do fazendeiro foi derrotada no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Os advogados do fazendeiro recorreram e o processo passou ao Supremo, sob a relatoria do presidente do tribunal, Ricardo Lewandowski. O magistrado deu razão aos ministros do STJ e reconheceu os direitos dos índios de reivindicar a propriedade com base em laudos antropológicos e as provas coletadas em processo aberto pela Funai. Porém, durante a sessão na 2ª Turma, o ministro Gilmar Mendes abriu a divergência e apresentou um voto contrário aos indígenas. Sua tese foi acolhida pelos ministros Celso de Mello e Carmen Lúcia.

TESE DE COPACABANA

Na sessão, Mendes recorreu à "tese de Copacabana", segundo a qual, disse o ministro, se a política de demarcação da Funai prosperar "podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena". Mendes disse ainda que "os aldeamentos extintos [...] pegariam uma boa parte de São Paulo". Afirmou ainda que "a União não pode amanhã retirar territórios a seu bel talante, e nós sabemos como isso é feito, esses laudos, laudo da Funai".

Lewandowski rebateu a argumentação, ao afirmar: "O agronegócio quer isso mesmo: expulsa os índios e depois os contrata como boias-frias. É assim que está acontecendo no Brasil todo".

O presidente do Supremo reafirmou, contra os argumentos de Mendes: "Mas são terras tradicionais, a Constituição assim o diz". Os ministros travaram um debate.

Mendes: "Terra tradicional é Copacabana, terra tradicional é Guarulhos."

Lewandowski: "Bem, mas Copacabana não chamou a atenção da ONU, e Mato Grosso do Sul chamou, interessante isso, não é?"

Mendes: "Agora a ONU é o argumento para o quê?"

Lewandowski: "Não, Copacabana é o argumento para o quê?"

Mendes: "É a posse tradicional".

Lewandowski: "Para mostrar um argumento 'ad absurdum'? Isso é o que estou dizendo, é como a questão das terras quilombolas, há de se fazer a devida distinção. Eu ouvi dizer que existem quilombolas que reivindicam as terras lá da Lagoa, onde existem condomínios de luxo, é claro que 'modus in rebus' [de modo algum]."


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