Folha de S. Paulo


Ju Qingdong, 84

Preso no Rio após golpe, jornalista chinês espera desculpas do Brasil

RESUMO - Na madrugada de 3 de abril de 1964, três dias após o golpe militar, nove chineses foram presos no Rio, suspeitos de tramar uma revolução comunista no país.

Sofreram torturas e foram condenados a dez anos de prisão, da qual cumpriram um, antes de serem expulsos do Brasil. O jornalista Ju Qingdong, 84, é uma das cinco vítimas ainda vivas. Ele continua à espera de um pedido de desculpas do governo brasileiro. O episódio é tema do livro recém-lançado "O Caso dos Nove Chineses", de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo

Caue Ferraz/Folhapress
o jornalista Ju Qingdong, 84, um dos nove chineses presos no Rio de Janeiro pela ditadura militar, três dias apos o golpe de 1964
Ju Qingdong, 84, um dos nove chineses presos no Rio pela ditadura militar, 3 dias após o golpe de 64

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"Policiais com sapatos de couro pisaram na minha barriga, causando uma evacuação involuntária. Me queimaram com cigarros. Começamos a fazer greve de fome. "A história e os fatos não mudam. Deveríamos resolver esse assunto corretamente. Do contrário, no fundo do coração, restará sempre um incômodo, um nó

Chegamos ao Rio de Janeiro em 29 de dezembro de 1961. Era véspera de Réveillon e, em seguida, veio o Carnaval. Nesse clima de festa, nossa adaptação foi muito fácil. Na época, os chineses não sabiam quase nada sobre o Brasil.

O país vivia um momento de debates e movimentos populares. Mas, para nós, o principal era reportar sobre assuntos econômicos, culturais e sociais. Sendo estrangeiros e jornalistas, não nos metemos [em política].

Às vezes sentíamos que estávamos sendo vigiados, mas nunca foi evidente. Tudo o que fazíamos era conforme a lei. Por isso, não saímos do Brasil quando ocorreu o golpe. Tomávamos muito cuidado, nunca tivemos contatos com qualquer partido. Tudo mudou no dia 3 de abril [de 1964].

O Caso dos Nove Chineses
Ciça Guedes e Murilo Fiuza
Ciça Guedes e Murilo Fiuza
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Até bem tarde da noite do dia 2, eu ainda estava enviando notícias. Às 22h, a polícia bateu na porta. Como era noite, não quisemos abrir. Se nos levassem presos de madrugada, sem ninguém saber, como iríamos nos defender?

Por isso, dissemos a eles que voltassem de manhã. Mas os policiais não quiseram esperar muito. Mal o dia clareou e eles voltaram e arrombaram a porta. Eram umas 4 ou 5 da manhã. O prédio inteiro assistiu, mas nenhum vizinho intercedeu.

Os policiais começaram a nos bater assim que entraram. Eu fui amarrado com os braços para trás e forçado a ir com eles em todos os cômodos para revistar o apartamento. Não havia diálogo, apenas ameaças. Diziam que iríamos ser fuzilados.

Nos revistaram e tiraram até o dinheiro que tínhamos no bolso. Na prisão, tiraram nossas roupas e todos nós fomos torturados. Policiais com sapatos de couro pisaram na minha barriga, causando uma evacuação involuntária. Me queimaram com cigarros. Já na segunda noite, começamos a fazer greve de fome.

Não conseguiram encontrar nada que pudesse nos incriminar, então disseram que os remédios chineses para gripe e as agulhas de acupuntura que encontraram no apartamento seriam usados para assassinatos por envenenamento. Confiscaram o nosso dinheiro como prova de acusação. Este dinheiro [R$ 865 mil em valores atuais] está até hoje retido no Brasil.

Fabricaram provas falsas. Até maio de 1964, não apareceu ninguém para ajudar. Um dia estávamos no pátio, quando chegou Sobral Pinto, o "velho advogado" [forma respeitosa usada pelos chineses], junto de um coronel. Vestia terno preto e tinha um guarda-chuva na mão.

Veio até nós e se apresentou: "Sobral Pinto, advogado. Sou católico; vocês, comunistas. Mesmo que não seja a mesma ideologia, estou aqui para prestar-lhes serviço de advogado. Li tudo que foi publicado sobre o caso de vocês, o que está acontecendo é uma palhaçada. Quero defendê-los sem cobrar nada".

Depois disso, ele passou a nos visitar duas ou três vezes por semana. Ele já tinha 72 anos. Era excelente pessoa. Houve sete audiências no tribunal. Cada um de nós recebeu sentença de dez anos de prisão. Ficamos muito indignados. Nada foi provado.

Recebemos amplo apoio internacional. Já estava bem claro que era perseguição política. A imprensa brasileira também nos apoiava. O Brasil ficou numa situação desconfortável no cenário internacional. Com a pressão internacional, logo que foi dada a sentença, o presidente concedeu a expulsão. Era mais fácil expulsar, em vez de os nove cumprirem a pena no Brasil.

Ficamos 380 dias presos no Brasil. Enquanto isso, na China o caso saía diariamente nas primeiras páginas dos jornais. Das grandes cidades às áreas rurais, inclusive nas mais montanhosas, todos sabiam. Até hoje, quem tem 60 anos ou mais na China lembra desse caso.

Fico feliz em ver que, hoje, o relacionamento entre nossos governos é muito diferente. Nosso futuro é muito bom. Mas a história e os fatos não mudam. Deveríamos resolver esse assunto corretamente. Do contrário, no fundo do coração, restará sempre um incômodo, um nó.

Em 1997, quando visitava minha filha no Chile, pedi um visto de turista para o Brasil, mas não fui atendido. Não posso confirmar a razão, mas vejo que o Brasil não tem coragem de dar o passo adiante.

Cinco de nós estão vivos. É claro que vivemos bem. Mas olhando para o passado, a ferida ainda existe, e é sempre lembrada. Gostaria que isso fosse resolvido, mas não vejo nada acontecer.

Há algum tempo, li num jornal chinês uma pequena notícia de que o governo brasileiro estabeleceu a comissão da verdade. Eu sei que milhares de brasileiros sofreram com isso. Espero que, no nosso caso, a sentença e a expulsão sejam anuladas e também o dinheiro seja devolvido. Ele é a falsa prova do nosso "crime", nem que seja um dólar, ele tem valor político.

Em 1974, quando foram estabelecidas as relações diplomáticas entre nossos países, o governo brasileiro disse que [nossa prisão] foi um erro político. Afirmou que iria resolver esse assunto o mais rápido possível, anular a sentença, a expulsão e devolver o dinheiro. Mas, até agora, nada.


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