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Acusada de articular atos violentos, professora diz que inquérito é ficção

Por 13 dias, a professora universitária Camila Jourdan, 34, permaneceu em uma cela no complexo penitenciário de Bangu, na zona oeste carioca. Ela é uma das protagonistas do inquérito com mais de 2.000 páginas, produzido pela Polícia Civil do Rio, que, sob a classificação de "quadrilha armada", responsabiliza 23 pessoas pela organização de ações violentas em protestos.

"Do pouco que li, posso dizer que esse processo é uma obra de literatura fantástica de má qualidade", definiu Camila, em entrevista à Folha, no sábado (26), dois dias após conquistar sua liberdade provisória.

Ela cita o teórico do anarquismo Mikhail Bakunin, ao falar sobre a fragilidade do inquérito. Em mensagens interceptadas pela polícia, Bakunin era citado por um manifestante e, a partir daí, o filósofo russo, morto em 1876, passou a figurar nos autos como potencial suspeito.

Por volta das 6h de 12 de julho, véspera da final da Copa, três policiais civis invadiram o apartamento da professora, que estava acompanhada pelo namorado, Igor D'Icarahy, 24, com mandados de prisão contra ambos.

Daniel Marenco/Folhapress
Camila Jourdan, presa na véspera da final da Copa e denunciada por formação de quadrilha armada
Camila Jourdan, presa na véspera da final da Copa e denunciada por formação de quadrilha armada

De acordo com o inquérito, os agentes encontraram uma garrafa com gasolina, uma bomba de fabricação caseira e outra conhecida como "cabeção de nego". Em diálogos grampeados, Camila faz referências a "livros" e "canetas", que, segundo os investigadores, seriam respectivamente coquetéis molotov e rojões.

Camila se recusou a falar sobre provas contra ela por orientação de Marino D'Icarahy, seu advogado e pai de Igor, que diz que as provas foram plantadas pela polícia.

LÍDER "FABRICADA"

Às referências constantes a seu nome no inquérito, Camila atribui uma razão: "existe uma necessidade de se fabricar líderes para essas manifestações. E quem se encaixa muito bem no papel da mentora intelectual? A professora universitária. Cai como uma luva, entendeu?"

Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Camila Jourdan sempre foi associada à excelência acadêmica. Um currículo "invejável", segundo um diretor da UERJ. Formada em filosofia, concluiu o doutorado pela PUC-RJ, com direito a um período de estudos na Universidade de Sorbonne, em Paris. Sua tese foi sobre a obra do filósofo Ludwig Wittgenstein.

"É uma excelente pesquisadora que se destacou por um trabalho original e muito sério", avalia Luiz Carlos Pereira, seu orientador nas teses de mestrado e doutorado.

De família da zona norte, Camila é neta de general. Seu pai morreu de câncer, quando era adolescente. Solteira, conta com o apoio da mãe para criar a filha, de 12 anos.

Classificada em primeiro lugar na seleção para professores da UERJ em 2010, ela atualmente é coordenadora do curso de pós-graduação em filosofia. Diz não gostar da burocracia inerente ao cargo. Prefere a sala de aula.

Ao longo da entrevista, manteve o mesmo tom de voz, sem alterações dramáticas. Conduz sua narrativa de forma didática, com ironia, e pontua a argumentação com perguntas ao interlocutor.

A professora recorre ao filósofo francês Michel Foucault para explicar que sua formação acadêmica está dissociada de sua participação na OATL (Organização Anarquista Terra e Liberdade) e na FIP (Frente Independente Popular), grupos acusados no inquérito de promover ações violentas em protestos.

"Foucault diz que os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles como interlocutores. Não tenho autoridade para falar sobre a opressão de ninguém. O movimento não precisa de mim para este papel".

Camila credita à FIP o mérito de tirar das manifestações do Rio a influência dos militantes de direita e dos partidos de esquerda.

Define-se como anarquista. Começou a se interessar na adolescência. "Eu gostava muito de Raul Seixas e descobri que ele era anarquista. Ali decidi começar a ler sobre o assunto." Aos 14 anos, saía para distribuir panfletos pregando o voto nulo. Sua estreia em protestos de rua foi no fim da década de 1990, época das privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso.

O desempenho do governo Luiz Inácio Lula da Silva reforçou suas convicções: "O Lula era visto como a esperança de mudança e fez um governo à direita. Esfregou na cara das pessoas aquilo que os anarquistas sempre disseram: não adianta você mudar as peças do jogo se o problema é o jogo."

Ela considera o processo eleitoral, "viciado", incapaz de provocar alguma modificação social ou política. "A participação política não pode se resumir a um objeto de consumo. Mandam o eleitor comprar um candidato. O ser humano precisa de participação política real e permanente. Nós fazemos isso nas manifestações e nos trabalhos de base, com movimentos sociais e assembleias populares", afirma.

Atribui as ações violentas dos manifestantes a uma resposta à truculência policial."Existe o direito à legítima defesa". Rechaça a tese de que a baixa adesão às manifestações recentes se deve à violência e aponta a maior conquista neste processo.

"Ninguém em sã consciência achou que junho representava um momento revolucionário. Foi importante no sentido do empoderamento da população. Isso nem esta tentativa de criminalização pode tirar. Está feito. Neste aspecto, a gente já ganhou."

Camila analisa a possibilidade de perder e ser condenada: "Tenho receio do que pode acontecer porque sei que não vivemos em uma sociedade justa. Não acredito neste Estado como um Estado democrático. Se acontecer [a condenação], ao menos, não vou me decepcionar neste sentido."

Editoria de Arte/Folhapress

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