Folha de S. Paulo


Sedes atraem prostitutas adolescentes

No interior do Ceará, a adolescente Paula (nome fictício), 16, planeja-se para a Copa do Mundo. Diz que passará 15 dias em Fortaleza para fazer programas sexuais.

À Folha, na zona rural de Quixadá, ela relata as viagens periódicas e "secretas" à capital do Estado –"meus pais não sabem"– e que cada programa custa cerca de R$ 60.

No Mundial, diz, um agenciador a levará a Fortaleza e cuidará da hospedagem. Em troca, ele receberá de R$ 15 a R$ 20 por cada programas. "Acaba sendo um trato."

Paula está a 1.823 km de Brasília, onde, na semana retrasada, ao lado de Xuxa, a presidente Dilma sancionou a lei que torna crime hediondo a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Jarbas Oliveira/Folhapress
Jovens se prostituem nas calçadas das ruas nas imediações da praia de Iracema e da Beira Mar em Fortaleza, Ceará
Jovens se prostituem nas calçadas das ruas às praias de Iracema e Beira Mar em Fortaleza, Ceará

A cearense Paula, que largou os estudos no 1º ano do ensino médio e atualmente faz bicos como babá, nunca ouviu falar dessa nova lei.

"A gente acaba não sabendo dessas coisas", diz.

Desconhecida de Paula, a lei torna esse crime inafiançável, e quem for condenado terá que cumprir um período maior no regime fechado para poder pleitear a progressão da pena, que é de quatro a dez anos de reclusão.

A assinatura da lei ocorreu na quarta (21). Cinco dias depois, na segunda (26), a Folha encontrou adolescentes à espera de programas no bairro turístico da praia de Iracema, em Fortaleza.

Com saias de pano, shorts apertados e blusas que mostravam a barriga, pediam de R$ 80 a R$ 100 pelo programa.

Ana (também fictício, assim como os demais citados nesta reportagem) mostrou uma identidade falsa, como se tivesse 24 anos. "Nunca lembro minha idade direito."

Ao lado de Ana, Marta se apresentou como conterrânea de Paula, de Quixadá (a 167 km de Fortaleza). "Vim para ganhar dinheiro na Copa."

REALIDADES IGUAIS

As realidades dessas três meninas cearenses se confundem com as de Jéssica, 16, Rafael, 16, e Cristina, 17, de Pernambuco, e as de Bruna, 16, e Carla, 17, no Amazonas.

No Recife, também na semana passada, a Folha encontrou Jéssica em meio a uma forte chuva. Encolhida, tossindo e tremendo de frio, aguardava algum carro que rendesse um novo programa.

Ela era a única naquela noite na beira do manguezal em Santo Amaro, no centro.

Eram 21h30, e ela já estava no local desde o meio-dia. Não fazia ideia de quantos programas havia feito naquele dia. Nem tinha mais dinheiro, gasto todo com crack.

"Até queria parar porque essa vida é muito difícil, os homens batem na gente, dizem que vão matar a gente. Mas o vício é grande", diz.

Frágil, doente e drogada, ela não tem muitas expectativas com a Copa do Mundo, ao contrário de Rafael, 16.

"Vou para a boate porque dá mais turista", diz o adolescente, que começou a se prostituir aos 14 anos e faz ponto na periferia do Recife.

A proximidade da Copa também anima a travesti Cristina, 17, que se prostitui desde os 13 e, no Mundial, promete elevar o preço do programa de R$ 100 para R$ 300 a hora no Recife. "Só vou pegar as 'maricóns' gringas e finas. Vai ser um arraso."

DINHEIRO FÁCIL

No outro extremo do país, em Manaus, a reportagem conversou com Bruna, 16: saia curta, blusa decotada, rosto e corpo de criança.

"Já fazia uma semana que eu e minha irmã de dois anos mal tínhamos o que comer. Uma amiga me contou onde conseguir dinheiro fácil."

Ela também sustenta o vício de crack e óxi e cobra R$ 40 por meia hora de programa. "Meu pai falava que nem pra puta eu servia. Perdi a vontade de ser alguma coisa na vida", diz a adolescente, que sonha ser veterinária.

Para a garota, a Copa é apenas uma chance de faturar um dinheiro a mais.

Numa outra esquina de Manaus, Carla, 17, conta com os estrangeiros do Mundial. "Falaram que vão chegar uns turistas com dinheiro, americano, inglês, e que a gente vai se dar bem na Copa", afirma.

Exploração sexual infantil e crime hediondo são termos que ela desconhece. "Tenho medo é de engravidar. Sei que o que eu faço não é certo, mas o que mais posso fazer?"

OUTRO LADO

O governo federal, Estados e municípios afirmam que estão se armando para tentar evitar uma explosão do turismo sexual infantil na Copa.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência iniciou em 2013 um plano para agilizar ações de combate ao crime, com reforço de equipes e plantões em dias de jogo.

A maior parte das ações se concentrará no entorno das arenas e das fan fests da Fifa, segundo a secretaria. As meninas encontradas pela reportagem no Recife, em Fortaleza e em Manaus, no entanto, estavam longe dessas áreas.

"A exploração sexual infantil não está mais tão visível, ela acontece nos bastidores da sociedade, por isso há dificuldade para combatê-la", disse Angélica Goulart, secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria dos Direitos Humanos.

Para a ONG sueca Childhood, que trata do assunto no Brasil, o governo demorou a agir. "Em algumas cidades, a questão começou a ser trabalhada no começo do ano. Mas é um pontapé inicial importante", disse Anna Flora Werneck, gerente da ONG.

Segundo ela, estudos mostram que eventos como a Copa, com "cenário de festa e álcool", podem alavancar o turismo sexual infantil, e até a pausa no calendário escolar é um problema, por deixar as crianças vulneráveis.

Ela acredita que só tornar a prática um crime hediondo não resolve. "É preciso aumentar as denúncias, melhorar as formas de combate."

Em Pernambuco, o governo informou que realiza palestras de conscientização e desenvolve um trabalho com taxistas para que denunciem a exploração sexual infantil.

A prefeitura do Recife diz que fez oficinas com taxistas e trabalhadores do setor hoteleiro, enquanto Manaus realizou uma campanha na semana passada e prevê a instalação de uma rede de proteção com vários órgãos.

O governo do Ceará e a prefeitura de Fortaleza, em parceria, dizem que têm uma política de fiscalização e que neste ano vão ampliá-la.


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