Folha de S. Paulo


Casa de Petrópolis formou agentes infiltrados, disse Malhães à Comissão da Verdade

Até hoje conhecida como um centro clandestino de tortura de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985), a Casa de Petrópolis, no Estado do Rio, teria funcionado também como um local para a transformação de militantes em agentes infiltrados nas organizações de esquerda.

A informação surge no longo depoimento de 248 páginas (leia íntegra aqui ) prestado pelo coronel Paulo Malhães, morto no dia 25 de abril, à Comissão Estadual da Verdade do Rio e divulgado nesta sexta-feira (30).

No depoimento, Malhães diz ter sido o responsável pelo sumiço do corpo do ex-deputado federal Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971, mas não revela o que foi feito: "Não vou revelar a cereja do bolo".

Em duas longas entrevistas, nos dias 18 de fevereiro e 11 de março, Malhães conta que para a Casa de Petrópolis eram levados militantes cujas prisões não houvessem sido registradas e que, na avaliação dos oficiais que cuidavam do local, pudessem ser "transformados" em informantes.

Diz que, por esse motivo, não faria sentido levar alguém como o ex-deputado federal Rubens Paiva para o lugar. "Não tem lógica você pegar o Rubens Paiva e levar ele para tentar fazer a cabeça dele. O nível, de Rubens Paiva, você estudava a vida dele, era um nível elevado", afirma.

Ao longo das 20 horas de conversa, o coronel Paulo Malhães conta que na Casa de Petrópolis conseguiu transformar entre 30 e 40 pessoas em informantes, mas não revela nomes. Ele diz ser esse seu compromisso com eles.

"Quando eu vi que ia terminar tudo [...] eu fui a um por um e disse [...] 'a partir de hoje nosso compromisso está no fim. Você que sabe o que você vai fazer da sua vida. Prometo a você que nunca direi seu nome, nem direi que você trabalhou para mim'".

Conta que a prisão do ex-oficial do Exército Lincoln Cordeiro Oest, membro do comitê do PC do B, teria acontecido com a ajuda de um de seus infiltrados, mas fantasia ao dizer que o militante morreu depois com a explosão de uma granada. De acordo com o livro "Brasil Nunca Mais", Lincoln Oest foi torturado no DOI-Codi. Exame cadavérico mostrou ainda que ele recebeu ao menos nove tiros. Na versão oficial, ele morreu em troca de tiros ao tentar fugir.

"Tinha um ponto marcado entre um elemento do comando, do comitê central do PC do B [Oest] e um infiltrado meu.[...]. Botei o infiltrado no lugar do ponto, entrou uma Kombi, passou devagarzinho [...]. A Kombi deu a segunda volta, parou e ele saltou. [...] O cara foi preso, mas o cara não ficou comigo. O Frota [... ]e disse, 'Malhães, eu quero ele vivo, porque ele foi meu colega de escola, do Exército' [...] Aí vieram dois –não vou dizer o nome deles– da contrainformação [...] e disseram 'Malhães, a ordem do ministro é você passar o preso para nós'. [...] Os caras levaram ele para um aparelho, que eu não sabia que a contrainformação tinha, e amassaram ele de porrada. Aí não tinha jeito de apresentar ele como preso. O que os caras fizeram, forjaram uma fuga, botaram uma granada nele [...] para explodir, para desfazer o estrago das porradas. Eu soube disso depois".

Ao divulgar a transcrição do depoimento de Malhães, o presidente da Comissão da Verdade do Rio, Wadih Damous, disse nesta sexta (30) que não acredita na transformação de presos políticos em agentes infiltrados a serviço da repressão. "É algo que nós consideramos leviano. Não levamos em consideração. Ele disse isso para desqualificar os presos", afirmou Damous.

RUBENS PAIVA

Apesar da insistência dos membros da Comissão, Malhães não revela o que foi feito com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva. Diz que seus entrevistadores querem "a cereja do bolo", mas nega-se a entregá-la.

Rubens Paiva foi preso em sua casa, no Leblon, zona sul do Rio, no dia 20 de janeiro de 1971. Foi levado para um órgão da Aeronáutica, próximo ao aeroporto Santos Dumont, e de lá para o temido DOI-Codi na rua Barão de Mesquita, na zona norte do Rio.

Submetido a sessões de tortura, morreu, possivelmente, na madrugada de 22 de janeiro. Agentes do Exército montaram uma farsa para simular sua fuga, afirmando que ele teria sido resgatado por militantes quando era transportado, no Alto da Boa Vista, zona norte da cidade.

No depoimento, Malhães conta que, em um primeiro momento, Paiva foi enterrado naquele local; depois, transferido para um terreno próximo à praia da Barra, zona oeste. Ele diz que foi então convocado para sumir com o corpo, pois havia o receio de ele ser descoberto. Os restos mortais do deputado foram colocados em um saco impermeável, na descrição do coronel, e levados.

Malhães não diz para onde, mas dá a entender que foram jogados em um curso de água, provavelmente um rio. Ele diz que não gosta de mar porque "o mar tanto leva quanto traz". "A água tem uma vantagem. Quando você sabe fazer, você joga aqui e o corpo vai parar, se parar [...] vai sair pelo mar, vai chegar no desaguadouro do rio e vai embora. Ninguém nunca mais acha." Repete diversas vezes que não pode dizer o que foi feito com o saco "porque ai vão dizer que só pode ter sido eu que contei".

Mas decide "ensinar" aos interlocutores como fazer para desaparecer com um corpo. Explica que ele deve ser colocado com uma quantidade de pedras "proporcional ao peso do adversário para que ele não afunde, nem suba". Assim, segundo ele, o corpo vai caminhando com o rio, por baixo d'água.

Editoria de Arte/Folhapress

TORTURA

Em seu depoimento, Paulo Malhães nega que tenha havido tortura na casa de Petrópolis, mas se contradiz mais adiante. Conta que tinha "um aparelhinho de choque especial" e que a melhor forma de usá-lo era conectando as duas pontas às orelhas do preso. Afirma também que, ao longo do tempo, "aprendeu" a como lidar com os presos.

"Sempre você começa meio rígido. Mas rigidez não é porrada não. Vou lhe ensinar uma grande coisa que aprendi: um homem que apanha na cara não fala mais nada para você. [...] Ele se tranca, você passa a ser o maior ofensor dele e o maior inimigo dele. A rigidez é o volume de voz, apertar ele psicologicamente", afirma.


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