Folha de S. Paulo


Rubens Paiva foi torturado ao som de 'Apesar de Você', diz testemunha

Três depoimentos que fazem parte da denúncia apresentada nesta segunda (19) pelo Ministério Público Federal à Justiça relatam como foram os últimos momentos de vida do ex-deputado federal Rubens Paiva.

Marilene Corona Franco e Cecília Viveiros de Castro viram Paiva (e ouviram seus gritos ao ser torturado) em uma instalação da Aeronáutica perto do aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, e no prédio do DOI-Codi na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, zona norte.

Edson Medeiros estava preso no DOI-Codi quando o deputado federal foi levado para lá.

As duas mulheres foram presas no dia 19 de janeiro de 1971 ao desembarcar de um avião da Varig no aeroporto do Galeão. Voltavam do Chile, onde tinham visitado parentes exilados, e traziam cartas de outros brasileiros que haviam fugido para aquele país. O contato para a distribuição das cartas no Brasil era Rubens Paiva.

Cecília tinha ido visitar um filho, Luiz Rodolfo Viveiros de Castro, que se exilara em meados de 1970. Marilene era irmã de Jane, mulher de Luiz Rodolfo.

Em seu depoimento ao Ministério Público Federal, Marilene Corona Franco contou que o avião que as trazia parou fora da área de desembarque. Na porta, de um jipe, homens gritavam o nome de "Marilene e acompanhante". As duas ficaram até o dia seguinte em uma sala, onde foram ameaçadas de ter que caminhar sobre uma chapa quente no chão.

Na manhã seguinte, um homem que depois Marilene identificou como o brigadeiro João Paulo Burnier lhe ordenou que ligasse para Rubens Paiva para combinar a entrega das cartas. Inicialmente, Marilene se negou a telefonar, mas foi ameaçada com uma arma por Burnier, que teria dito: "você vai telefonar, a não ser que queira que a gente use a força".

Quando Rubens Paiva atendeu a ligação, Burnier, por rádio, avisou sua equipe: "Já cercaram a casa do homem? Ele está em casa, podem invadir".

Logo depois, ela e Cecília, então com 48 anos e professora de uma tradicional escola para meninas no Rio, o Sion, foram levadas para as instalações da Aeronáutica ao lado do Santos Dumont. Marilene contou aos procuradores ter visto Rubens Paiva "com o rosto muito vermelho, como se estivesse muito nervoso ou tivesse levado alguns tapas na face".

Separada de Marilene, Cecília contou, em um depoimento manuscrito entregue ao Ministério Público Federal por seu filho, Luiz Rodolfo, ter ouvido gritos "de um cidadão que estava sendo interrogado". "Era a primeira vez que eu constatava a existência dos horrores das torturas, tão negadas nos comunicados oficiais do governo", escreveu.

Algum tempo depois, Marilene foi colocada em um carro; Cecília e Rubens Paiva em outro. A professora levou um susto ao ver o ex-deputado a seu lado no carro. Em seu depoimento, Cecília, que morreu há um ano, escreveu:

"Fizeram entrar no mesmo carro e sentar do meu lado um homem grande, gordo, alourado, de olhos claros, suado e amarrado com as mãos atrás das costas, que me olhou de relance. Reconheci, espantada, ser o dr. Rubens Paiva, pai de três meninas, minhas alunas no Colégio Sion e companheiras de minhas filhas. Era ele que tinha estado apanhando."

Marilene contou que ao chegar ao DOI-Codi e reencontrar Cecília, a professora lhe disse: "Leninha, se prepare, porque chegamos na boca do inferno. Isso aqui é o Doi-Codi". Segundo Marilene, os três foram colocados, encapuzados, de pé diante de uma parede. Em determinado momento, alguém passou e deu um soco em Rubens Paiva. Cecília pediu que parassem, dizendo que iam "matar esse homem". "Isso aqui é uma guerra", respondeu alguém, de acordo com Marilene.

O ex-deputado foi depois levado para um salão. Aos procuradores, Marilene contou que era possível ouvir os gritos de Paiva, apesar de seus torturadores tentaram abafar o ruído com um aparelho de rádio em alto volume. A ex-presa relatou não ter esquecido as músicas que ouviu naquele momento: "Jesus Cristo", de Roberto Carlos, e "Apesar de Você", de Chico Buarque.

Em outro ponto do DOI-Codi, o médico Edson Medeiros, que estava em cela gradeada no térreo do DOI-Codi, ouviu os mesmos gritos e a mesma música –"Jesus Cristo", em alto volume. Aos procuradores, contou que algum tempo depois viu de sua cela passarem dois recrutas puxando pelos pés um homem forte e gordo, com mais de 100 quilos. O homem foi colocado em uma cela ao lado da sua e gemia muito.

Medeiros contou também que, depois de algum tempo, viu entrarem na cela "três ou quatro oficiais do Exército que aparentavam estar muito nervosos e agitados". Algumas horas depois viu agentes retirarem da cela um corpo inerte e totalmente coberto. O médico disse aos procuradores que não conhecia Rubens Paiva mas depois, vendo as fotos que saíram nos jornais, não teve a menor dúvida de que era o deputado o homem arrastado pelos agentes.


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