Folha de S. Paulo


Médico que fez plástica em Lamarca ganhou pacientes após deixar prisão

Julho de 1969. Em um dia que em tese seria normal, o médico Afrânio de Freitas Azevedo foi procurado por um colega de profissão para pedir um favor que mudaria sua vida: fazer uma cirurgia plástica num guerrilheiro procurado pela ditadura.

Sem saber de quem se tratava, concordou em fazer a cirurgia, também motivado por suas raízes comunistas, mas pediu para ver o paciente antes – queria fazer um exame prévio e avaliar o procedimento a ser feito.

Era Carlos Lamarca, mas ele não sabia. Encontraram-se na insuspeita Clínica Cirúrgica São João de Deus, mantida por padres portugueses, no tranquilo bairro de Santa Teresa. Na consulta, anotou "nariz muito longo, orelhas de abano, ruga na testa que pesa nas sobrancelhas, rosto estreito e grandes sulcos nas faces".

Após avaliar o desconhecido e marcar a plástica para a noite seguinte, o cirurgião, que à época integrava a equipe de Ivo Pitanguy, viajou para a Bahia, onde ministrou palestra a médicos.
No aeroporto de Salvador, Azevedo deparou-se com um cartaz com a inscrição: "Procura-se este facínora". Na foto, o rapaz que ele iria operar em poucas horas.

"Foi a palestra mais eletrizante que dei em toda minha vida. Ao chegar ao Rio, por volta das 20h, fui direto para a clínica onde já me esperava o paciente de nome Paulo César de Castro, profissão cabeleireiro", disse ele, que mora em Uberlândia (MG), sobre como Lamarca se apresentou.

Durante a cirurgia, Iara Iavelberg, companheira de Lamarca, ficou escondida num guarda-roupas, segundo ele. Ao fim do procedimento, o casal e o médico que apresentou o guerrilheiro a Azevedo deixaram a clínica e nunca mais voltaram, nem para retirar os pontos da cirurgia.

O cirurgião disse que não deve ter sido escolhido pelo talento como cirurgião, mas também pelo histórico estudantil: nos anos na Faculdade Nacional de Medicina da Praia Vermelha, hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), era ligado à UME (União Metropolitana dos Estudantes) e participava de movimentos pelo fim da ditadura, o que lhe rendeu cinco prisões para averiguação.

"Toquei 'piano' tantas vezes que um dia eu falei: 'não precisa mais disso não, vocês já têm tudo aí'", afirmou ele, que em 1957 foi à Rússia participar de encontro da juventude comunista.

Seis meses após a cirurgia, Azevedo foi denunciado pelo médico que intermediou o procedimento, mas não o considera delator. "Ele foi barbaramente torturado."

Ao receber voz de prisão, nem se trocou após finalizar uma cirurgia e foi levado com o jaleco sujo de sangue.

No DOI-Codi, teve a cabeça raspada, dormiu no chão, se alimentou de pão velho e, por 73 dias, disse ter visto torturas. Não foi torturado, situação que alega ter ocorrido por ser, à época, casado com a filha de um general que servia no Ministério da Guerra.

No processo que sofreu, Pitanguy se ofereceu para testemunhar. "Em um depoimento de quase duas horas, eu o eximi de responsabilidade", disse Pitanguy. Segundo ele, qualquer paciente que procure um cirurgião "em busca de harmonizar suas feições deve ser atendido".

Mesmo absolvido, Azevedo foi chamado de "cirurgião do terror" à época. Qualifica o termo como positivo. "Fiquei famoso com o caso e ganhei muito dinheiro operando desde artistas da Bossa Nova até mulheres e familiares de generais e militares."

Só foi rever o rosto de Lamarca operado em 1971, na foto em que o guerrilheiro aparece morto –morreu em Pintada (BA). "Ele era muito carismático e sua presença é inesquecível", disse Azevedo, que hoje se dedica à fazenda adquirida graças aos milhares de pacientes que teve na vida profissional.


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