Folha de S. Paulo


'O Exército brasileiro não era de nada', diz o sociólogo Francisco de Oliveira

Quando o então governador de Pernambuco Miguel Arraes recebeu a ordem de prisão de um militar da Marinha, no dia 31 de março de 1964, nas dependências do próprio palácio do governo, o sociólogo Francisco de Oliveira estava presente. Ele ouviu o rápido diálogo entre Arraes e seu algoz e presenciou o momento exato da deposição.

Na época, Oliveira tinha 31 anos e era o homem forte da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) na região, órgão federal criado pelo então ministro do Planejamento do presidente João Goulart, o economista Celso Furtado.

Reconhecido como um dos nomes mais importantes da sociologia brasileira, Oliveira conta agora, aos risos, como tentou convencer Arraes a resistir ao golpe.

Fabio Braga - 24.jun.2013/Folhapress
O sociólogo Francisco de Oliveira tentou convencer Miguel Arraes, governador de PE, a resistir ao golpe
O sociólogo Francisco de Oliveira tentou convencer Miguel Arraes, governador de PE, a resistir ao golpe

Ele diz que, minutos antes da chegada do militar da Marinha, ofereceu ao governador as cem picapes Willys da Sudene "que estavam diretamente sob minhas ordens". Um grupo de fuzileiros navais havia sugerido apoio a Arraes. A Polícia Militar de Pernambuco também poderia atuar. O plano era colocar um homem armado na caçamba de cada veículo e ir para o enfrentamento, lembra. Arraes nem respondeu.

Para Oliveira, a "tradição conciliadora brasileira pesou" e evitou a organização de uma resistência. Ele não poupa críticas à esquerda. Às vezes com galhofa: "No país da putaria, como é que o líder da esquerda (Luís Carlos Prestes) casa virgem aos 50 anos?"

Mas o sociólogo garante que teria sido fácil derrotar o Exército, mal treinado e munido de armas obsoletas naquele 1964. "Um peteleco acabava com aquilo", diz o autor de "O Ornitorrinco" (Boitempo) e "A economia brasileira: crítica à razão dualista" (Vozes), entre outras obras.

Nesse depoimento, colhido no fim de 2013, quando completou 80 anos, Oliveira também faz reflexões sobre os sentidos e a herança do regime militar. Para ele, a ditadura serviu para complementar a abertura do país para o sistema capitalista. Um capitalismo que, a exemplo do que ocorreu em vários outros países, precisou ser imposto pela força. O resultado final de todo esse processo, conclui, é hoje uma democracia "que não tem força social nem política para mudar o rumo das coisas".

*

Folha - Onde o senhor estava em 31 de março de 1964?
Francisco de Oliveira - No palácio do governo de Pernambuco.

Como é que foi?
Foi todo um movimento, as lideranças principais reunidas no palácio. Eu não era liderança principal nenhuma, devo corrigir. Mas eu estava a frente da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), era o sub do Celso Furtado (ministro do Planejamento naquela época). E quem mandava na administração da Sudene era eu. Mandava, não. Eu exercia. Porque o Celso estrava dedicado à grande política, que era importante. Ele não se sustentava se não tivesse uma ligação direta com a Presidência [da República]. E eu não fazia esse papel porque não tinha projeção nenhuma. Eu era o administrador e, como tal, estava no palácio do governo de Pernambuco no dia 31 de março. Todos nós fomos pegos pelas calças.

O Celso Furtado estava lá?
Foi para lá depois.

E quem mais estava? O governador...
O governador [Miguel] Arraes... Arraes sempre foi um conciliador. Ele não era um revolucionário. Nem ninguém pediu a ele que fosse. Mas você às vezes é a pessoa errada no lugar errado. Ele não soube reagir [ao golpe]. Embora tenha reagido com muita dignidade. Eu estava junto dele quando ele enfrentou o comandante da Marinha, que foi uma das Forças militares que deram o golpe. A Marinha sempre foi uma Força muito reacionária, né? E ele [Arraes] comportou-se com extrema dignidade. Mas nenhum de nós tinha a dimensão real do que estava surgindo. Carlos Duarte era um líder comunista, que não mandava no partido, mas se elegia sempre vereador. Não é um nome nacional. Carlos Duarte disse: "Não se faz..." Como se diz? De ovos?

Omelete.
"Não se faz omelete sem quebrar os ovos." E os Fuzileiros Navais, que eram a força revolucionária na Marinha, convidaram Arraes: "O senhor vai pro Porto do Recife" -pois a guarnição dos fuzileiros era no porto- "que nós garantimos o seu governo". Arraes não teve colhões para ir. Passou-se assim.

Isso foi no próprio dia 31?
Dia 31.

Mas como chegou a notícia [do golpe] no palácio?
Olhe. Não chegava notícia. Chegava pelas vias militares. Os jornais não tinham independência. Chegava pelas vias militares, com o fato consumado. Eu saí do palácio do governo, tomei o carro para ir para minha casa, que era em Casa Amarela [bairro de Recife]. No caminho cruzei, quem conhece Recife vai saber, Faculdade de Direito e, ali, Largo 13 de Maio e a rua do Hospício. Eu ia entrar por ali. E vi os tanques na rua. Voltei. Falei pro motorista voltar. Fui lá para o palácio do governo. Disse a Arraes: "Os tanques estão na rua, governador, o senhor está sendo preso".

Como ele reagiu?
Ele não se moveu. O major Hugo Trench -a tradição era que as polícias militares eram comandadas por oficiais do Exército transformados em oficiais das brigadas militares-, eu disse isso na frente do Hugo Trench. Ele era um velho quadro do Partido Comunista e era o comandante da Polícia Militar de Pernambuco. O Trench virou e disse ao Arraes que eu era um provocador. Eu disse a ele: "O senhor vai ver o que é um provocador daqui a poucas horas". De fato, ele foi preso (risos) porque estava a frente da Brigada Militar. Daí ninguém podia reagir, não tinha força para lutar.

Mas e quando o fuzileiro naval fez a proposta? O que o governador disse?
Ele também não reagiu. Ele era a indecisão em pessoa.

O senhor chegou a conversar com ele especificamente sobre isso? Disse "vai governador"?
Eu estava ali para isso, né? Além do que, eu coloquei a Sudene à disposição dele. Não era uma coisa de bravata. Porque a Sudene tinha cem picapes Willys que estavam diretamente sob minhas ordens. Eu disse a ele: "Eu tenho cem [picapes], o Trench bota um soldado com metralhadora em cada uma delas, e eu quero ver esse golpe se consumar". Ninguém teve coragem, né? A nossa tradição conciliadora nessa hora pesa.

O [então governador do Rio Grande do Sul, Leonel] Brizola foi mais...
Brizola é a única figura que sai inteira do 31 de março. Os outros todos se apequenaram. Um misto de falta de coragem e de conciliação.

O senhor teve medo?
Eu não. Não tive medo. Eu vim de uma experiência de... Eu tinha sido soldado em 1952, convocado, né? Não consegui escapar. Eu conhecia o Exército brasileiro. O Exército não era de nada, gente. O Exército era armado com fuzis Máuser 1914. Era um fuzil alemão, bom para sua época, defasado para 1964. Isso era o Exército brasileiro. Eu conhecia porque eu servi na companhia do Quartel General.

O fuzil de 1914 poderia estar obsoleto. Mas enfrentá-lo sem nada na mão também seria meio difícil, não?
Mas tinha. Os fuzileiros navais estavam lá.

E eles tinham equipamento moderno?
Mais moderno que os do Exército. Os fuzileiros são uma espécie de vanguarda militar brasileira. Eles são melhor armados. São poucos, mas eles são profissionais. Porque no sistema de recrutamento brasileiro [era assim]: no Exército você ficava dez meses e saía, porque não tinha dinheiro para pagar [uma permanência maior]. Já os fuzileiros se profissionalizavam obrigatoriamente. Por que? Porque o período deles de recrutamento era de três anos.

E por que eles tinham essa característica diferente, de chegar propor uma resistência ao Arraes?
Não sei. Tinha algumas lideranças, como o almirante [Cândido da Costa] Aragão, que foi sempre apequenado pela imprensa, mas ele era para valer. Os fuzileiros tinham uma tradição diferente. Eu não sei explicar. É mesmo curioso. Eles tinham uma tradição diferente. Eles garantiam. Se era bravata ou não, não sei. O Exército era de nada. Um peteleco acabava com aquilo. Eram mal armados, mal treinados. Eu fui do Exército, eu passei dez meses no Exército. E o que é que eu sabia de arte de guerra? Nada. É coisa que não se ensina no Exército. A tradição conciliadora brasileira é tanta, que as Forças Armadas não são ensinadas para lutar. Elas são ensinadas para a passeata. Só.

O que é isso (risos)? Exército de passeata?
Os fuzis que nós tínhamos eram fuzis de passeata. Quando você tinha que atirar mesmo, você ia para o Recife, para a região chamada linha do tiro. Linha do tiro porque é lá que o Exército faz seus exercícios. Então você chegava para fazer o exercício de atirar, não era com o seu fuzil. Era com o fuzil que atirava.

O seu mesmo só servia para o [desfile] do 7 de setembro?
É. Só servia pro 7 de setembro. Ele não atirava. Se atirasse, a bala poderia ir para o lugar que você não queria. Isso era o Exército brasileiro.

O senhor atirava bastante?
Nesse outro [fuzil]. No meu, não. Isso era o Exército brasileiro. Com um peteleco você resolveria aquilo. Mas ninguém arriscava, ninguém arriscava. Os que tinham algum poder de fogo estavam do outro lado. Eu tinha um amigo, um grande amigo meu, que infelizmente já morreu, ele pensou que a Brigada Militar de Pernambuco iria resistir (risos). Ele era professor do curso de formação de oficiais na Brigada. E ele ofereceu-se para resistir. Foi preso (risos). Quando eu entrei (risos)... lá no centro da polícia onde fiquei preso, eu o encontrei (risos). Estávamos nós dois numa situação...

Voltando um pouco, quando o senhor foi trabalhar na Sudene. O senhor foi a convite do Celso Furtado? Foi desde o começo?
A convite do Celso. Eu sou fundador. Honra, eu tenho. Eu era substituto do Celso.

O número dois da Sudene?
É. Mas não por mérito.

Confiança?
Não. Não tinha confiança nem nada. A Sudene é uma coisa extraordinária. Ele estava recrutando gente no Rio [de Janeiro] para formar a Sudene. E não era a Sudene, era Codene. Juscelino [Kubitschek], a única vez que eu vi o Juscelino na minha vida, foi em Garanhuns (PE), onde ele lançou a Operação Nordeste. Ele era muito cheio de bravata, tudo, mas ele era um grande presidente. Aí em Garanhuns, no famoso Seminário de Garanhuns, ele fundou o Codene, o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste. A mensagem estava no Congresso, e em dezembro de 1959 o Congresso cria a Sudene. O Celso recrutava pessoas. Eu estava aqui em São Paulo muito insatisfeito. Alguém me deu a notícia, "o Celso está recrutando gente que queira ir para Recife pra fazer..." Ninguém sabia direito o que era.

O senhor o conhecia antes?
Não. Ele me deu aula aqui em São Paulo, mas não tinha conhecido nada. Ele deu aula a mim como deu a 50. Então eu fui [para o Rio]. "Eu soube que o senhor está recrutando profissionais"; eu levei todos os cursos que eu tinha feito, esperando que ele desse valor para aquilo. Ele não deu o menor valor. Ele disse: "Vá lá. Você está disposto a ir para Recife?" "Estou sim, senhor". "Vá lá com o Medeiros". Medeiros era o braço dele administrativo. O Celso era muito paraibano. Todos os melhores auxiliares dele eram da Paraíba. Eu fui a exceção, mas era de Pernambuco. Pernambuco e Paraíba são duas províncias iguais (risos). Fui falar com Medeiros. Ele disse: "Você vai para Recife? Quando quer ir?". "Quando o senhor quiser." As pessoas pensam que é um grande aparato. Não é nada. O Estado brasileiro não é nada. Eu fui lá falar com ele. Ele perguntou: "O que é que o senhor precisa?". Disse: "Eu preciso é de passagem, para mim e para a minha família." Ele disse: "Então está bem, volte amanhã". E foi assim.

E o Arraes nesse época?
O Arraes era o prefeito. Ele se elegeu governador em 1963. Ele era um prefeito arranjado, né? Depois você faz as biografias. Arraes era a solução que a esquerda podia dar sem ser de esquerda. Ele era uma pessoa digna, era um economista –veja de onde, né?– do Instituto do Açúcar e do Álcool, que era o reduto dos usineiros. O cunhado dele foi o governador Cid Sampaio. Eles eram casados com duas irmãs. O Arraes era de dentro. O próprio mel (risos). De repente, o sujeito vira revolucionário (risos). A história brasileira é quase pândega, né? Era o homem errado no lugar errado. Com muita dignidade, ele nunca se entregou. Mas não tinha preparação nenhuma de revolução, imagina...

Como foi essa virada dele?
A virada foi das forças sociais. Isso parece muito abstrato, mas é assim. Não foi dele. O Recife sempre foi uma cidade de esquerda, né? Por tradição e por organizações. Pernambuco é aquele horror das usinas, e o Recife é uma ilha. É uma cidade com certa tradição quase revolucionária. Revolução mesmo nunca chegou a fazer.

Então foi Recife que transformou Arraes?
Foi. O Recife transformou Arraes. Transformou Cid Sampaio, que era usineiro mesmo, mas era usineiro progressista. Quer dizer, ele estava pelo desenvolvimento. Não sabia muito o que era isso. Era um governador que a UDN fez, contra a UDN. Porque ele era do desenvolvimento econômico. E a UDN era legalista, moralista. Pois os dois [Cid e Arraes] eram concunhados.

Tudo em família?
Tudo em família (risos)

E agora tem o neto aí [Eduardo Campos]?
Agora o neto. O Arraes era casado com a Célia, o Cid Sampaio era casado com a Dulce. Eram irmãs. Ele [Arraes] estava no meio do mel. E vira revolucionário? Não é verdade, é preciso investigar todo o movimento social. O antecessor de Arraes, que depois voltou à prefeitura, era Pelópidas Silveira, um tipo clássico da esquerda recifense. Nunca foi do Partido Comunista porque o partido era muito hábil. Ele não botava suas figuras de proa, procurava sempre... O Partido Comunista teve maioria de votos em Jaboatão, que era uma cidade operária. Conhecida como Moscouzinho.

Moscouzinho? (risos)
É. Esse era o ambiente do Recife. E esse ambiente que transformou Arraes e o governador Cid Sampaio em governadores progressistas. É abstrato dizer, mas é assim.

Mas voltando ao golpe de 64. Como foi isso? O senhor disse que demorou para perceber a dimensão daquilo, né?
Todos nós demoramos. A gente pensava que iria ser um golpismo barato dos militares. Na história brasileira, isso é recorrente. Ninguém tinha a dimensão exata que viria 20 anos pela frente. Esses 20 anos moldaram o Brasil.

E quando o senhor percebeu que era para valer?
Demorou para cair a ficha. Para todos nós.

Mas, olhando para trás agora, teria sido possível perceber naquele momento?
Não, não dava. Ninguém acreditava. A história do Recife era contrária a isso. Era uma história progressista. Foi um dos poucos locais que 1935 teve real expressão. Foi o Rio, Recife e Natal, as três capitais de esquerda. Essa tradição era vigorosa, não era fajuta. Rio Grande do Norte também elegeu um prefeito de esquerda [em Natal], Djalma Maranhão, de uma família toda de esquerda. Os Maranhão, no Rio Grande do Norte, são todos de esquerda. Em Pernambuco, são todos de direita. Mas é a mesma família. Demorou a cair a ficha. Seria mais um dos golpes, né? Mais um da história republicana. Não foi, né?

Como afetou sua vida particular? Aliás, como foi o desfecho daquele dia 31? O senhor voltou para o palácio, os fuzileiros fizeram a proposta para proteger Arraes, mas o Arraes não foi. E aí?
Aí chegou o almirante Dias Fernandes. O cérebro era... Era o cérebro sem cérebro: era o Justino Alves Bastos, um general escroto. O Exército sempre botou os seus refugos no Nordeste. Ou era refugo porque era ruim demais na carreira militar, ou era refugo porque era o cérebro da conspiração eterna, né? Tanto que [Humberto] Castelo Branco foi comandante da zona militar do norte. Eram os piores, do ponto de vista de oposição ao regime. Ou eram os piores, do ponto de vista progressistas. Justino era desse segundo tipo. Um general escroto, que os usineiros mantinham amarrado às dívidas do jogo de carteado.

É mesmo?
É. Essa história eu não vou me dispor a contar porque tenho pouco tempo de vida. Mas é uma história sinistra. De golpes baixos. Não tem nada grande. É uma história menor.

Mas foi Justino que chegou no palácio para prender Arraes?
Não. Justino não apareceu. Quem apareceu foi o almirante Dias Fernandes, que era o comandante da Marinha.

Na própria noite dia 31?
Na própria noite. Ele chegou e, bom, falar com o governador era fácil, naquilo ali todo mundo entrava. Ele chegou e disse... Isso [que eu vou dizer] é quase literal porque eu estava junto, não porque era especial, estava junto porque o Arraes me chamou. A mim e a irmã dele pelo telefone e disse: "Por favor, venha cá porque eu quero testemunhas do que vai acontecer". A irmã dele era a famosa Violeta Arraes. Nós voltamos. Aí o almirante enquadrou o Arraes. Ele disse: "Governador, eu tenho a ingrata missão de lhe dar voz de prisão. O senhor será hóspede das Forças Armadas." O Arraes respondeu. A dignidade dele mostrou-se aí. Ele disse: "Eu não posso ser hóspede de mim mesmo. Eu sou governador do Estado. E esta é a minha residência." Então o Dias Fernandes falou: "Considere-se deposto". E levou ele para Fernando de Noronha, que era o lugar de preso político. Ele foi. Não podia resistir. Foram ele e Seixas Dória, que era o governador de Sergipe. Os dois únicos presos. Os outros todos se acomodaram. Governadores de penca. Fácil. Também não tinham como resistir, né? Arraes tinha.

Aí ele foi para Noronha. O senhor já esteve em Noronha?
Estive para turismo.

É bom, né? Mas para ficar preso ali não deve ser bom, não.
Dali você não sai (risos). Tem 3 mil quilômetros de mar, cheio de tubarão.

E o senhor, para onde foi naquela noite?
Eu voltei para casa. Voltei pensando que era mais um golpe militar farsesco. E correu tudo bem. No dia 6 de abril eles chegaram.

Mas o senhor trabalhou nesse intervalo, nos dias 2, 3, 4?
Trabalhei. Normal. Para entregar, porque a gente sabia que... Arrumar tudo para entregar a quem fosse designado. E o designado foi um coronel do Exército que trabalhava conosco. Porque o Exército tem um quadro técnico formidável. Que não é aproveitado em nada. Então a Sudene requisitava eles. Em cartografia, por exemplo. Quem sabia cartografia no Brasil era o Exército. E cartografia marítima, [quem sabe] é a Marinha. Então se você queria fazer algum trabalho de vulto em recursos naturais, tinha que ir lá. A Aeronáutica, menos. A Aeronáutica sempre se formou como uma arma reacionária, o que é fantástico, né? Porque foi uma arma criada por [Getúlio] Vargas. Mas eram muito reacionários. Mas voltei para casa, no dia 6 chegaram. Aí me levaram para a Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), que era chefiada pelo facínora Álvaro da Costa Lima, famoso no Recife por arrancar unha de comunista. Eu estava lá, ele me fez passar a noite em claro, sentado numa cadeira defronte dele. Era a primeira forma de tortura: ficar olhando para o seu torturador. Eu fiquei lá. Só que para azar dele, sorte minha, eu tinha um irmão que era da Polícia Militar. Ele veio, me tirou e me levou para o quartel da polícia. E ele [Álvaro] ficou lá se mordendo. Ele estava louco para saltar em cima de mim.

O senhor conhecia ele antes?
Ele era famoso no Recife. Ele era o delegado que tratava os comunistas. Nesse rol ele incluía quem ele queria. Aí [meu irmão] me levou para a Polícia Militar e eu fui bem tratado, ninguém tocou em mim. E eu encontrei o João Guerra, que era o secretário da Fazenda do Arraes. Ele era uma figura muito visada porque ele fazia a ponte entre a esquerda e a direita empresarial. Ficamos juntos durante 50 dias.

E diziam o quê? O senhor foi preso exatamente pelo quê?
E diziam?

Não diziam nada?
Nada.

Nenhuma [informação]? "O senhor está simplesmente preso e pronto", era isso?
Não tinha acusação nenhuma. Está preso e ponto. Ponto final.

E o senhor questionava, perguntava?
Não. Não tinha nem a quem perguntar...

Bom, o senhor sabia porque estava sendo preso [risos]?
Eu sabia [risos]. João Guerra e eu ficamos nas dependências do quartel-general da Polícia Militar. Cinquenta dias. Tinha um coronel boa praça que chegava lá todos os dias, conversava com a gente [risos].

Conversava sobre o quê?
Qualquer coisa. Menos o que interessava.

Ele sabia o que não podia conversar.
[O golpe] Não era para ser conversado. Ficamos lá eu e o João. O João bebia como um nababo.

Mas como bebia? Dentro da cadeia?
Sim. Uai, ele era secretário da Fazenda. Ele tinha ganho uma tonelada de uísque, o que é comum, dão presentes. E a mulher dele ia levando uma garrafa atrás da outra. Ele bebia no gogó [risos].

O senhor tinha que idade?
Tinha 31 anos.

Tinha filhos já?
Tinha, tinha. Eu sou um conservador que caiu no lugar errado.

Eram quantos?
Já eram cinco.

Cinco?
É. A minha mulher levava os meninos lá, levava almoço todos os dias. Eu engordei na cadeia, era uma coisa. Era, era terra em transe. João Guerra bebia na frente do coronel Prazeres. O coronel aconselhava ele. O doutor João chamava ele [o coronel] de doutor. Ele não era doutor, mas no Nordeste é assim: todo mundo que tem algum cargo importante é doutor. Ele dizia: "faz mal beber assim". O João Guerra nem ligava.

E o senhor engordou na cadeia? Hoje o senhor ri disso, mas não deve ter sido fácil.
Hoje eu dou risada. É o heroísmo possível, né [risos]? João Guerra fica bebendo. Eu não bebia porque não era meu estilo. Mas chegava lá todo dia as nossas mulheres, elas levavam a xepa.

A comida da cadeia o senhor recusava?
A da cadeia a gente recusava olimpicamente.

Era uma cela, o senhor e ele numa cela?
Não, você não acreditará, mas era na sala do comando do estado-maior do quartel-general. Era na chefia. Só não podia ir para a rua. O resto podia. Ficava ali conversando com os policiais.

E esse coronel prende, deixa beber na cadeia e fica dando conselho de saúde?
Prende e, na cadeia, ele [João Guerra] bebe na frente do coronel, que é o que está prendendo ele. E o coronel fica dando conselho pra ele. Essa é a terra em transe. Aqui não é fantasia. É assim mesmo. Aí ficamos lá, sem interrogatório nenhum, sem nada. Até que o general, agora escapou o nome dele, esse general, Castelo Branco o encarregou de verificar a situação in loco. Porque a arbitrariedade ocorria o Brasil todo. Ele [o general] foi, você veja que é terra em transe, esse general foi meu colega no curso da Cepal (Comissão Econômica para a América Larina), no Rio. Ele foi, evidentemente os presos mais ilustres ele não visitou [risos]. Quer dizer: isso existe em algum outro lugar do mundo? Ele foi lá. Eu relembrei a ele que havíamos sido colegas no Cepal. Ele ficou assustado, né? E pronto. Aí mandou liberar todo mundo. Libera!

Do mesmo jeito que prendeu, libera?
É. Do mesmo jeito que prendeu, libera. Foi por isso que eu vim bater em São Paulo. Eu dizia: "Eu não vou voltar para casa agora e a cada bochicho eu sou chamado novamente, vou lá, passo algumas horas de vexame e depois volto". Você ficava no vai e volta, né? Diziam até que as pessoas mais notáveis do ponto de vista da repressão já tinham até pijama e cueca separadas. Já ia para cadeia com aquilo. Não, eu não ia ficar naquela situação.

Bom, mas aí então o senhor já tinha dimensão que o negócio iria ser duradouro, certo?
Aí eu já tinha. O nosso engano não pode ir muito a frente. Veio pra valer. Aí em vim para São Paulo, tinha um amigo meu que estava dirigindo uma empresa de consultoria, me convidou, eu vim pra cá. Fiquei.

O senhor disse lá no começo que foi um regime que moldou o país. Como o senhor define esse período de 20 anos?
Esse período é muito parecido com a história mundial. A história mundial do capitalismo. O capitalismo –salvo na Inglaterra, que é a matriz original- em todos os países e sociedades, ele se impôs pela força. Os Estados Unidos parecem ser um caso à parte, mas não tanto. Nos EUA, a conquista do oeste, mudou os EUA. E a conquista do oeste é uma façanha da cavalaria. Uma ocupação militar, portanto, antes da ocupação civil. O Brasil portanto se insere na história mundial como um "caso belli". Quer dizer: o desenvolvimento brasileiro é marcado pela ação do Exército como força civilizadora. E como força do capitalismo. Ele toma essa feição. Ele não se endereça a regiões em nome disso, mas termina sendo.

É consequência?
Sim, consequência. Porque você não muda sociedade conservadora escravista pelos bons modos. Não há caso no mundo, mesmo nos EUA. Tem de ser na porrada para destruir as forças que sustentam o outro sistema.

No caso brasileiro, foi a ditadura?
No caso brasileiro já tinha sido Vargas. Sobre Vargas é preciso despojar-se dos preconceitos. Os nossos preconceitos, da esquerda, é que Vargas foi um ditador. Só que ele tinha a clareza de saber que essa sociedade só se reforma pela força. Leia este livro do Lira Neto, que é a biografia do Getúlio, está tudo ali. Ele tinha total consciência. Porque a gente caricaturou o Vargas. A esquerda não entendeu, não podia admiti-lo como seu e o caricaturou. Na verdade Vargas é o oposto do que a esquerda o caricaturou. Era um tipo cultivado, e cultivado com a melhor da tradição filosófica ocidental. Não era um João-ninguém. E fez uma obra de estadista, que ninguém repetiu. Nós temos enorme dificuldade [para lidar com ele] porque este era o papel da esquerda. Ele fez. E não se pode dizer que foi a direita. [Vargas] É um tipo politicamente difícil de classificar, de definir de forma muito esquemática. É preciso um trabalho, que o Lira Neto faz muito bem. Enfim, a grande transformação veio por aí, não veio pelas forças progressistas. Ele criou o Estado moderno no Brasil. Só há uma instituição brasileira que não é obra de Vargas, que é o Banco Central. Todas as outras são criações do período Vargas. É fantástico, isso. Quando o Fernando Henrique disse que ia ser presidente para encerrar a era Vargas, ele não sabia o que estava dizendo. Só o Banco Central, assim mesmo o Vargas criou a Superintendência da Moeda e do Crédito, que é o antecessor. Então, o que ficou para completamento daquela abertura para o sistema capitalista, aí a ditadura fez.

Ela encerrou o serviço?
Ela encerrou o serviço usando, similarmente a Vargas, a força do Estado, o poder de coerção. Para uma burguesia que não tinha projeto nacional. Que era uma grande merda. E para uma esquerda que já tinha sido superada. Se você ler a história de [Luís Carlos] Prestes, tem um livro aí interessante, que não achei na livraria, mas eu sei que existe, é de uma tese, acho que na USP. O livro é "Prestes, o mito e a lenda". Essa pessoa que fez a tese, acho que é uma mulher, ela faz um esforço de revirar, como quem diz "Prestes não é essa coisa toda". Eu não li o livro. Talvez ela esteja equivocada. Prestes, de fato, pessoalmente é uma enorme decepção. Mas é o prestismo: a forma pela qual o Partido Comunista influenciou na política brasileira que é interessante. Prestes talvez não. Prestes, afinal de contas, casou-se virgem, aos 50 anos. Quer dizer: ninguém acredita numa coisa dessa, né? (risos) No país da putaria, como é que o líder da esquerda, o líder progressista casa virgem aos 50 anos (risos)?

Casa, né?
Casa. Ainda casa! Ele não se juntou, ele casou. Mais essa. A grande herança do prestismo é essa. E então os militares completaram. Completaram com o quê? Usando, de forma abusada, e sem dar satisfação a ninguém, o poder do Estado para, aí sim, para alavancar o capitalismo brasileiro. Sem conversa fiada. A obra de Vargas foi criar o aparato social. E a parte deles [da ditadura] foi completar com a parte econômica, coisa que o Vargas tocou só com a [Companhia] Siderúrgica Nacional. Essa é a obra que ficou, de 1964 a 1984. Eles usaram as empresas estatais com uma desfaçatez que nem o esquerdista mais rancoroso teria. E completaram a obra. Não sobrou nada. Essa é a obra deles. E é o legado porque, a partir daí, eles conformaram o tipo de crescimento capitalista no Brasil de uma maneira que você não tem como mudar. A não ser com uma grande revolução social, para qual não tem demanda. Não tem o que fazer. Ninguém está pedindo isso.

De 1985 para cá já são mais de 30 anos. É o período democrático mais longo desde a República. O que tem a dizer sobre isso?
Isso, infelizmente, só confirma o legado dos militares.

Por quê?
Porque a democracia, como existe no Brasil, não tem força social nem política para mudar o rumo das coisas. Ela não... Se você... A grande força política que moldou as instituições brasileiras [no período recente] foi o PMDB. O programa econômico do PMDB não é nada. Ele não tem um programa econômico. Devo dizer isso até porque o programa social do PMDB foi o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) que fez. Não deve ser dito assim, porque, de fato, foi um grupo de pessoas, comandado pelo Fernando Henrique [Cardoso], que fez o programa do MDB. Entre os quais eu estava, ele próprio, o Chico Weffort, o Luiz Werneck Viana, do Rio, a Maria Hermínia Tavares de Almeida, de São Paulo. Foi esse grupo que fez o programa e que entregou ao Ulysses Guimarães. Não era o grupo inteiro do Cebrap. Teve gente do Cebrap que até surpreendentemente não participou. Paul Singer decidiu: "não entro, esse não é o programa dos meus sonhos, não vai". O programa econômico era isso.

E o PT?
O programa do PT... O PT tem uma interpretação do Brasil? Não tem. O programa do PT é o de qualquer ONG. É melhorar a distribuição da renda, é não sei o quê. Tudo palavreado. Não tem força para fazer nada. Porque os militares já tinham feito.

O (filósofo) Marcos Nobre, do Cebrap, diz que o que o PT e o PSDB fizeram no período recente foi só disputar quem iria dirigir o pemedebismo.
Foi. Foi só isso. Marcos está certo.

Ela fala como esse pemedebismo vai se moldando ao longo do tempo, mas para deixar tudo igual. Sempre para adiar qualquer chance de transformação.
Está certo ele, mas está errado no seguinte: isto é a transformação. Porque é a possibilidade que as forças políticas, tal como elas existem no Brasil, têm de tocar esse capitalismo. Outro [caminho] requereria uma articulação revolucionária que não está na sociedade. Não está. Nenhuma das grandes forças sociais é revolucionária. Como é que você faz revolução sem força revolucionária? Não faz. Então é o que é possível. É a teoria do possibilismo, é o que está ao alcance dessas forças.


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