Folha de S. Paulo


Canção de Geraldo Vandré é a mais emblemática dos anos da ditadura

"Para Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, é a música mais representativa entre as canções que contam a história do período da ditadura militar (1964-1985) no Brasil.

Pelo menos, esse é o resultado de enquete feita pela Folha com artistas e intelectuais, que selecionaram as principais composições do período.

"Caminhando", como também é conhecida, impressiona pelo forte teor revolucionário da letra: "Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer". Essa postura audaciosa de desafio à ditadura, em pleno período de radicalização do regime, levou a canção a um sucesso fulminante", analisa o historiador e produtor musical Jairo Severiano, 87, autor de "Uma História da Música Popular Brasileira".

Logo a seguir, com 17 votos dos especialistas ouvidos pela Folha (apenas um a menos do que a campeã), aparece "Apesar de Você", de Chico Buarque de Hollanda. "Já contém o tom de fim do regime e aponta para o fato de que, historicamente, em algum momento, os poderosos da ocasião seriam julgados por seus atos. Não entendo e acredito que o Chico também não, que esse julgamento (que aliás já está acontecendo, com as Comissões da Verdade) seja algo para 'pagar na mesma moeda' as barbaridades que eles cometeram. Apenas um acerto de contas necessário para a história e para a construção de um país que chegue mais próximo da verdade desse período e se livre do autoritarismo, diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, 61, autora de "Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978)".

Chico Buarque (em parceria com Gilberto Gil) é também o autor da terceira música mais votada, "Cálice". A canção mostra "a tortura e a censura como sinônimos do auge do regime repressivo durante a vigência do AI-5", no entender do historiador Marco Antonio Villa, 59, autor de "Ditadura à Brasileira, 1964-1985. A Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita".

Em quarto lugar está "O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, eternizada na voz de Elis Regina. Ela foi "o hino da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Em meio às incertezas do processo de abertura política, a canção pediu a todos que tivessem fé e continuassem lutar", avalia o jornalista Franklin Martins, 65, ministro-chefe da Secretaria da Comunicação Social em parte do governo Lula (2007-2010) e um dos dirigentes da resistência armada à ditadura militar, que atualmente escreve um livro sobre música e política no Brasil.

A quinta mais votada é "Opinião", de Zé Ketti, interpretada por Nara Leão no espetáculo de mesmo nome, no Rio, em 1964. Trata-se da "primeira manifestação artística contra o golpe com repercussão nacional ", afirma Barnabé Medeiros Filho, 67, escritor e jornalista, autor de "1964 - O golpe que Marcou a Ferro uma Geração".

VOTAÇÃO

Cada um dos 26 artistas e intelectuais ouvidos pela Folha escolheu dez músicas que consideraram as mais importantes ou representativas do período. Houve quem apontasse mais canções; alguns escolheram menos. No total, o "júri" indicou 129 músicas, mas apenas 40 delas tiveram mais de um voto e foram incluídas na lista final das canções que contam a história do golpe e do período da ditadura militar.

Todas elas, por certo, são importantes e tiveram grande significado nos movimentos de protesto. Afinal, como diz o cineasta Sílvio Tendler, 64, documentarista que já realizou diversos filmes sobre a história do Brasil, "nem sempre de pedras vive o revolucionário. As flores e os cânticos são armas poderosas".

Além das músicas que serviram como hino, há as que foram denúncia, como "Menino", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que conclamava a protestos contra o assassinato do estudante Edson Luís por militares, em 1968. Censurada na época, só foi gravada quase dez anos depois, em 1976.

Estudantes e manifestantes também se apropriavam de canções e modificavam as letras para escarnecer do regime. Tendler lembra, por exemplo, que a carnavalesca "Máscara Negra", de Zé Ketti, que começa dizendo "Quanto riso, ó quanto alegria, mais de mil palhaços no salão...", foi transformada em "Quantos tiras, ó quantos gorilas, mais de mil milicos em ação, estudante está apanhando pelas ruas da cidade, gritando por liberdade". E termina: "Vou gritar-te agora, não me leve a mal: fora o marechal!"

O regime militar também estava consciente da importância da chamada "luta ideológica", do uso da música como propaganda. Talvez o exemplo mais perfeito seja "Eu Te Amo, Meu Brasil". Sobre ela, o jornalista e produtor musical Fernando Rosa, 59, comenta: "Essa canção deve constar de qualquer lista musical do período. Escrita por Don e Ravel e interpretada pelos Incríveis, foi o hino da Copa do Mundo dos anos 70, embalada pela ditadura que fez dela sua marca naquele momento.

E a multiartista e professora da USP Giselle Beiguelman, 51, diz: "Constrangida, assumo que já marchei muito cantando as glórias do Brasil ensolarado, horrorizando minha família, historicamente de esquerda".

De qualquer modo, esse tipo de música foi minoritária no período, muito menos importante que as canções de protesto. Estas, no dizer da cantora lírica Céline Imbert, 62, ", denunciaram, criticaram e condenaram a vida dura e triste dos anos de chumbo aos quais nos vimos submetidos".

As músicas de protesto, analisa Imbert, "contribuíram enormemente para a queda do regime militar. E, certamente, poder cantá-las aos quatro cantos, gritando a surdina de seus subtextos, nos tornou mais fortes, conscientes e coniventes com a proposta de luta por um Brasil decente e íntegro. Luta que, até hoje, temos como bandeira. Nossa democracia é débil e corre risco".

Confira aqui os comentários dos historiadores Maria Aparecida de Aquino e Marco Antonio Villa sobre suas escolhas das músicas mais emblemáticas dos anos da ditadura.

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Saiba quem foram os artistas, intelectuais e políticos que participaram da enquete

1) Barnabé Medeiros Filho, 67, escritor e jornalista, autor de
"1964 - O golpe Que Marcou A Ferro Uma Geração"

2) Beatriz Cannabrava, 79, professora de música, educadora popular, tradutora, cantora

3) Camilo Tavares, 42, cineasta, diretor de "O Dia que Durou 21 Anos"

4) Cida Moreira, 62, cantora

5) Céline Imbert, 62, cantora lírica

6) Chaim Litewski, 59, cineasta e chefe do setor de televisão da Organização das Nações Unidas, diretor de "Cidadão Boilesen"

7) Consuelo de Castro, 68, escritora, dramaturga, publicitaria e roteirista

8) Danilo Miranda, 70, sociólogo, diretor regional do Sesc SP

9) Fafá de Belém, 57, cantora

10) Fernando Rosa, 59, jornalista, editor do portal Senhor F, curador e organizador do festival El Mapa de Todos

11) Flavio Tavares, 79, jornalista e escritor,

12) Francis Hime, 74, compositor, maestro, arranjador, músico e cantor

13) Franklin Martins, 65, jornalista e escritor, foi ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social no governo Lula; durante a ditadura, militou no grupo comunista MR8 e participou do sequestro embaixador norte-america Charles Burke Elbrick

14) Gilson Schwartz, 54, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo

15) Giselle Beiguelman, 51, artista e pesquisadora, coordena o curso de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

16) Jairo Severiano, 87, historiador e produtor musical, autor de "Uma História da Música Popular Brasileira"

17) Luiza Erundina, 79, deputada federal (PSB-SP), ex-prefeita de São Paulo

18) Márcio Borges, 68, compositor e escritor, integrante do Clube da Esquina, coletivo de artistas mineiros

19) Marco Antonio Villa, 58, historiador, autor de "Ditadura à Brasileira, 1964-1985. A democracia Golpeada à Esquerda e à Direita"

20) Maria Aparecida Aquino, 61, historiadora, professora da USP, autora de "Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978)" e "Radiografias do Autoritarismo Republicano Brasileiro"

21) Paulo Markun, 61, jornalista, editor do site Brado Retumbante, sobre a história do Brasil do golpe militar às eleições diretas

22) Pinky Wainer, 59, artista plástica

23) Rodrigo Faour, Rodrigo Faour, é jornalista, produtor e escritor, autor de "História sexual da MPB"

24) Sérgio Ricardo, 81, cantor e compositor

25) Sílvio Tendler, 64, cineasta

26) Vladimir Sacchetta, 64, jornalista e pesquisador, coautor de "A Imagem e o Gesto: Fotobiografia de Carlos Marighella"


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