Folha de S. Paulo


Análise: Recebimento de restos mortais por Dilma simboliza transformação do PT

O recebimento oficial dos restos mortais de João Goulart pela presidente Dilma Rousseff não deixa de ser ato de justiça histórica. Mas também simboliza o transformismo pelo qual passou o PT.

O partido nasceu atacando Getúlio Vargas, Jango e a estrutura sindical do Estado Novo. O "populismo" era entendido como a relação entre o líder e as massas sem organização. Tudo mudaria com o PT. Apesar da liderança de Lula, ele estaria apoiado num partido operário. Os "pelegos" seriam superados pelo "novo sindicalismo".

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Sabemos hoje que a crítica era equivocada. Os pobres se organizam, embora nem sempre segundo os valores tradicionais da esquerda. Foi sua luta que exigiu o voto e a CLT.

A relação entre "povo" e Estado se expressava no líder carismático. Este "defendia" os trabalhadores, mas não tolerava que ameaçassem a ordem. Podiam ter sindicatos, mas com uma burocracia sustentada pelo imposto sindical. Aos inconformistas sobrava a repressão: é incontável o número de comunistas mortos entre 1930 e 1964, antes mesmo do regime militar.

Hoje o PT é diferente. O novo sindicalismo envelheceu com o imposto sindical; a crítica à ditadura cedeu lugar à anódina "apuração da verdade histórica"; o lulismo envolveu o petismo e sua ideologia é um sistema de conciliação de classes baseado na ideia de que os de baixo rejeitam mudanças radicais.

O "populismo" expulso pela porta da frente voltou pelos fundos. Mas a leitura que se tem dele é a mesma. As "massas" são sempre passivas. Só que antes o fenômeno era negativo. Agora sobram citações de como Vargas foi abatido pela direita...

Mas o lulismo se sustenta eleitoralmente pelo pouco que ainda carrega do velho petismo, abrigado só em setores minoritários do PT e ironicamente em discursos de Lula após sua saída do Planalto.

O fato é que milhões de pessoas ingressaram no consumo, há pleno emprego e o salário mínimo teve crescimento real exatamente como pedia o 5º Encontro do PT em 1987. Já as reformas estruturais do programa histórico do partido foram abandonadas.

Como ontem, os resultados de uma luta coletiva foram sequestrados pelo líder bafejado por vendavais de votos. Mas eis que em junho de 2013 apareceu o inferno da mobilidade urbana, da falta de educação, da violência policial, da saúde elitista e da política imutável. As novas demandas não cabem mais nos limites do lulismo.

Que o PT homenageie Jango é bom. Poderia começar estudando suas "reformas de base" e o famigerado dispositivo militar que ele acreditava ter para resistir ao golpe de 1964.

LINCOLN SECCO é professor de história contemporânea na USP e autor de "A História do PT" (Ateliê).


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