Folha de S. Paulo


'Tenho duas grandes frustrações', diz relator da Constituição

Relator da Comissão de Sistematização da Constituição de 1988, o ex-senador Bernardo Cabral (PMDB-AM), hoje com 80 anos, diz que guarda duas grandes frustações dos trabalhos daquele período.

A primeira foi não ter conseguido impedir a aprovação da possibilidade de uso da medidas provisórias por parte do presidente da República.

A medida provisória, diz ele, foi pensada para funcionar no sistema parlamentarista de governo, modelo que ele defendeu --e ainda defende--, mas acabou derrotado no plenário.

"Eu disse (...): 'Se isso ficar no texto será dado ao presidente da República poderes que nenhum ditador teve'", afirma ele. "Infelizmente a minha profecia estava certa".

Luciana Whitaker/Folhapress
O ex-senador e relator da Constituição Bernardo Cabral
O ex-senador e relator da Constituição Bernardo Cabral

A outra frustração é com as normas aprovadas que passaram a balizar o processo de reforma agrária. Para Bernardo Cabral, as regras atuais explicam as invasões, a demora para as desapropriações e as dificuldades para as indenizações. "[O resultado] ficou pior que o Estatuto da Terra do governo militar", afirma.

No período de elaboração da Constituição, Cabral exerceu o papel mais importante do Congresso depois de Ulysses Gumarães, o presidente da Assembleia Constituinte.

Entre os pontos positivos da Carta de 1988, ele lista, entre outras coisas, o poder dado ao Ministério Público, a liberdade de informação e as garantias fundamentais. "Nenhuma outra constituição do mundo tem garantias para a cidadania como a nossa".

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Folha - Nesses 25 anos, o senhor lidou diretamente com a Constituição a partir de três perspectivas: foi senador constituinte relator da Carta, depois foi ministro da Justiça, e depois voltou à advocacia. Qual foi a situação mais complicada?
Bernardo Cabral - São momentos distintos. Como presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), de 1981 a 1983, tive o episódio da bomba do Rio Centro, a bomba que explodiu no colo do sargento, o oficial que ficou ferido, tudo porque queriam acabar com o movimento da turma mais jovem. Aquele foi um momento muito difícil. Depois, eu diria que foi [difícil] como ministro da Justiça, pois estávamos saindo de um momento excepcional para um reordenamento constitucional, a nossa Constituição tinha apenas dois anos de existência. Eu fui ministro apenas sete meses, aliás. Quando teve aquela confusão toda do impeachment do [presidente Fernando] Collor, eu não estava mais lá. E claro que, se você pensar e idealizar o que é a feitura de um texto em plena Assembleia Nacional Constituinte, verá que foi difícil porque contrariou interesses, muita disputa.

E olhando hoje, 25 anos depois, que tal o resultado?
Se ao final não foi a Constituição ideal que todos queriam, foi a Constituição que ao menos representou o momento. As pessoas se esquecem que, no ano de 1987, quem participou desse trabalho foram guerrilheiros, banidos, professores aposentados, cassados. Aquela diáspora que os Atos Institucionais motivaram, muita gente saindo do país, deu lugar ao reencontro. E o reencontro foi na Constituinte, onde todo mundo tinha que colocar aquilo que desejava. Você via os corredores [do Congresso] apinhados de pessoas, cada um querendo participar do lobby de sua instituição: Ministério Público, polícia, Judiciário.

Alguma desilusão?
Eu tenho duas grandes frustrações na nossa Constituição Federal de 1988. Primeiro é que quando o texto saiu na comissão de sistematização, nós aplaudimos e aprovamos o sistema parlamentarista de governo. Quando foi para o plenário, derrotaram-no e então aprovaram o presidencialismo. Eu chamei então o Humberto Lucena [ex-senador], que era o líder dos presidencialistas, e disse: "Humberto, chama o seu pessoal e retire do texto da Constituição, esse que vocês estão aprovando aí, retire o instituto da medida provisória". Eu disse: "Se isso ficar no texto será dado ao presidente da República poderes que nenhum ditador teve". Ele perguntou: "Mas por que?". "É porque o Presidente da República vai ser usurpador dos poderes do Congresso Nacional". Infelizmente a minha profecia estava certa. Aconteceu. Então está aí a medida provisória, e não diga que é [problema] deste presidente ou do outro. Não. Todos os presidentes após a promulgação editaram medidas provisórias. E com um agravante. Na reedição, embutiam assuntos que não constavam na primeira proposta. E o que é mais grave: se fosse no sistema parlamentarista, essas medidas só seriam editadas se tivesse relevância e urgência. Então veja como isso se vulgarizou.

E por que não retiraram o mecanismo de medida rrovisória quando o parlamentarismo perdeu?
Descuidaram, né? A medida provisória já estava aprovada, o parlamentarismo já estava aprovado [em comissão]. Aí derrubaram o parlamentarismo [no plenário] e mais nada, o resto continuou. Eu é que não tinha poderes para derrubar [as medidas provisórias]. O meu parecer foi contra o presidencialismo. Enquanto houver presidencialismo, você não tem coalizão partidária. Coalizão só existe no parlamentarismo. E o resultado, você sabe melhor que eu, foi esse mensalão que se criou, o toma lá dá cá.

E a outra frustração?
O instituto da reforma agrária. Você vai perguntar: "Como você, como relator, foi deixar configurar na Constituição de 88 essa reforma agrária?". Vou dizer. O meu parecer sobre desapropriação para fins de reforma agrária era muito bom. Mas o que foi aprovado, o que derrotou a minha posição, ficou pior que o Estatuto da Terra do governo militar. Então você vê o que acontece hoje com a reforma agrária. É terrível. Hoje, essas invasões acontecem com depredações, geralmente no que há de melhor [nas propriedades], pois ninguém invade terreno que não presta. Tudo isso porque não se disciplinou a reforma agrária. Hoje, quando tem um imóvel a ser desapropriado, é preciso fazer o depósito em dinheiro, mas isso vai para as calendas gregas. Não se disciplinou como deveria. Era para que o povo tivesse a reforma agrária sem sobressaltos. Pouco tempo atrás depredaram um laboratório no Rio Grande de Sul, um prejuízo danado. E a reforma agrária não anda. Todos sofrem com isso. De um lado, reclamam porque ela não anda. De outro lado, o proprietário da terra também [sofre]. O instituto para desapropriação para fins de reforma agrária ficou muito aquém do instituto do governo militar.

Fale sobre as pressões que o senhor e os congressistas sofriam na época.
Percorridos 25 anos da promulgação, e mais dois de trabalhos, ninguém se lembra mais com a Constituição foi elaborada. O tempo foi esmaecendo e as coisas vão se tornando diferentes. Quando estávamos para promulgar a Constituição, em julho de 88, o que se dizia nos corredores da Assembleia Nacional Constituinte era que o governo iria fechar a Constituinte. Era que a Constituição, se porventura fosse promulgada, não duraria seis meses. E mais, diziam que o país ficaria ingovernável. Uma coisa que ninguém mais se lembra é que, em julho de 88, o Ulysses [Guimarães] foi para a tribuna e fez um discurso vigoroso dizendo "nós não viemos aqui para ter medo". E fez uma profecia: "esta Constituição terá cheiro de amanhã e não cheiro de mofo". Pois bem. Aqueles catastrofistas devem estar se revirando no túmulo. Quando o [presidente militar Arthur da] Costa e Silva teve o acidente vascular cerebral, quem deveria assumir era o grande jurista Pedro Aleixo, mas a Junta Militar tomou conta do poder e não deixou que ele assumisse. Pois bem. Quando o [Fernando] Collor foi afastado do poder, não foi a Junta Militar que assumiu. Quem assumiu foi o Itamar Franco. E governou até o final. Depois o Fernando Henrique. Foi reeleito. Depois Lula. Foi reeleito. E agora a Dilma [Rousseff]. Se fosse ingovernável, eles não teriam assumido. E todos assumiram à custa da Constituição de 1988. Ela brecou qualquer tipo de crise política. Não tivemos nenhuma crise política para fechar nenhum dos poderes. A história corrige injustiças.

Qual é, na sua opinião, a principal marca da Constituição de 1988? O que a distingue fundamentalmente das anteriores ou das internacionais?
São algumas. Primeiro, o poder que se deu ao Ministério Público contra a corrupção. Segundo, a liberdade de informação. Terceiro, e isso eu fiz porque lá na minha terra, lá no começo, eu fui fundador do sindicato dos jornalistas, consagramos o sigilo da fonte [de jornalistas] no texto constitucional. No governo militar, você era torturado para dizer qual era a fonte. Ou era banido lá para Fernando de Noronha, como fizeram uma fez com o [jornalista] Hélio Fernandes, eu lembro bem disso. Mais? O fim da censura, isso é fantástico. Outra coisa boa é a sustentabilidade, isso que hoje todo mundo está falando. Lá atrás, há 27 anos, nós incluímos o meio ambiente no texto quando ninguém falava nisso. Essa Constituição foi pioneira nisso. E mais, o que todos reconhecem, é que nenhuma outra constituição do mundo tem garantias para a cidadania como a nossa. O fio condutor e filosófico dela é o homem, o ser humano. Ela começa com o homem. O Estado só aparece lá na frente. Nas constituições anteriores do Brasil, todas começavam pelo Estado e só lá pelo artigo 150 começava a parte do ser humano.

Desde a promulgação já foram feitas 80 emendas, o que fez a Constituição crescer quase 40% em número de dispositivos. Por que muda tanto?
Tem uma justificativa. Quando você elege uma Assembleia Constituinte, você elege através do povo, que tem o poder constituinte originário. Mas quando o constituinte originário toma posse, ele embute o poder constituinte derivado. As emendas estão na Constituição. Elas têm de ser usadas por aqueles que estão no parlamento hoje. O que não pode é ficar mudando com emendas que são meramente circunstanciais. Eu nunca calculei [se são muitas emendas]. Você está dizendo que são 80. Mas pelo menos não mexeram nos direitos e garantias fundamentais.

Na comparação com as Constituições dos outros países, a nossa está no time dos textos grandes. Fazer uma Constituição longa ou enxuta era preocupação dos congressistas naquela época. Havia essa discussão entre vocês? Por que optaram pela grande?
Quem faz a leitura sem nenhum preconceito vai ver que ela foi composta pelo pessoal que participou daquele reencontro que eu te falei. O país estava saindo de uma excepcionalidade institucional para um reordenamento constitucional. Então a Constituição foi mesmo imensa. Ela é prolixa? É. É detalhista? É. Acontece, e aí está a grande virtude, que o constitucionalista colocou no ato das disposições transitórias a necessidade de revisão constitucional cinco anos depois. Em 1993, eu não estava no Congresso, a revisão não foi aproveitada. Daria para fazer pela maioria de votos. Eu acho que desperdiçaram a oportunidade. Se tivesse o aparo dos excessos, ninguém estaria reclamando hoje. Agora tem uma coisa que as pessoas esquecem. Quem poderia prever em 1987 ou 1988 que o muro de Berlim iria cair? Você tinha uma dicotomia do comunismo e do capitalismo. Isso desapareceu. Aquela história de tomar território porque era país mais forte cedeu lugar para uma economia globalizada. Então são momentos muito difíceis. Se você pensar como era lá atrás, verá que não tinha outro caminho.

Na época, o presidente José Sarney interferiu muito pela manutenção do presidencialismo e para assegurar os cinco anos de mandato para ele, não aceitava reduzir de seis para quatro. Mas e nos outros temas, como foi?
Não tenho conhecimento nos outros temas. Nesses dois, sem dúvida, a atuação do pessoal que o apoiava foi decisiva para a derrota do parlamentarismo e para os cinco anos de mandato. Mas nos outros temas não lembro mesmo de ele ter tido interferência direta.

Com base no que a gente vê hoje, parece até estranho imaginar baixa intervenção do governo federal. Na sua opinião, o Tancredo Neves teria influenciado mais?
Provavelmente. Porque o Sarney tinha o estigma ainda de ter sido da Arena, do regime militar. E o Tancredo era mais ligado ao Ulysses, fizeram a campanha Diretas Já.

Há anos fala-se sobre a necessidade de uma reforma política. É difícil achar alguém que julgue o atual sistema eleitoral como ótimo. E é mais difícil ainda achar alguém que não veja uma acentuação dos principais defeitos, como a questão do financiamento das campanhas. O senhor diria que a Constituição falhou nesse capítulo?
Não falhou por uma razão muito simples. Não era um tema que se julgava necessariamente constitucional. E se supunha, eu ainda suponho, que você só fará uma reforma política, uma reforma partidária, uma reforma substancial, no primeiro momento que o presidente da República assumir. Quando ele assume, ele está com uma força, uma simpatia, como se fosse uma noiva da imprensa, uma noiva da opinião pública. Esse é o momento que ele tem de aproveitar. A partir do segundo ano, os parlamentares já estão pensando em sua reeleição, o próprio presidente passa a pensar em reeleição, em atrapalhar os outros partidos. Aí não terá condições de fazer. Mas digo mais. No sistema presidencialista de governo no Brasil nós nunca teremos partidos fortes. Coalizão partidária só existe no parlamentarismo. No presidencialismo só tem coalizão de pessoas. É por isso que o [ex-deputado Roberto] Cardoso Alves disse aquele "toma lá, dá cá". Ficou assim.


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