Folha de S. Paulo


Análise: Referência ao futebol é analogia lógica a um papa argentino no Brasil

Demorou, mas a lógica acabou prevalecendo: é claro que um papa argentino, pregando para uma multidão de jovens no Brasil, usaria analogias futebolísticas para falar do engajamento na fé.

E fez a referência mais clara até agora aos protestos capitaneados por jovens no Brasil e no mundo, dando uma interpretação essencialmente espiritual aos eventos políticos: para construir uma sociedade mais justa, é preciso antes de mais nada reformar a si mesmo.

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Francisco convocou os fiéis reunidos na vigília deste sábado a se transformarem em "atletas de Cristo", dizendo que "Jesus nos oferece algo muito superior que a Copa do Mundo!".

A fala do sumo pontífice, como se pode entrever por esses dois exemplos, mais uma vez seguiu o estilo simples, didático e próximo do cotidiano que tem marcado a quase totalidade de seus discursos no país. Mas, por trás da abordagem pé-no-chão, Francisco voltou a retomar uma série de pontos-chave de seu pontificado até agora.

Logo no começo de sua fala, o papa citou uma passagem das narrativas medievais sobre a vida de São Francisco de Assis (1181-1226) que se tornou uma espécie de emblema para os que enxergam Bergoglio como um líder reformista.

Na história, o santo, recém-chamado à vocação religiosa, entra na igrejinha de São Damião, nos arredores da cidade italiana de Assis, e acredita ouvir o Jesus do crucifixo da igreja dizendo: "Francisco, conserta a minha igreja".

O papa lembra que, na época, o fundador dos franciscanos seguiu essas instruções de modo literal, começando a carregar pedras para reparar a esburacada igreja, mas depois percebeu que Cristo o estava chamando para reparar os abusos e a prepotência de um catolicismo medieval muito centrado nas riquezas e no poder, que havia esquecido a pobreza evangélica de Jesus e seus apóstolos.

Analistas do Vaticano, juntando a escolha do nome de Francisco com a disposição do papa de buscar uma "igreja pobre", logo recordaram essa história como sinal de que o atual pontífice buscaria uma ampla reforma do catolicismo, o que ainda não se verificou.

É verdade que Francisco está longe de ser o primeiro expoente do cristianismo a fazer analogias entre o "treinamento" para a fé e o treinamento esportivo. Durante sua fala, ele também citou o apóstolo Paulo, o qual, em sua Primeira Carta aos Coríntios, fala da disciplina dos atletas da época do Império Romano (em geral, praticantes do que chamaríamos hoje de atletismo) para ganhar coroas de louros, as "medalhas" de então.

O papa aproveitou para usar a metáfora esportiva ao abordar três diferentes sentidos da palavra "campo" a partir da parábola de Jesus sobre o semeador e a "semente" da palavra de Deus, no Evangelho de Mateus: o campo como local de semeadura, como local de treinamento esportivo e como canteiro de obras - nesse caso, com a ideia de "construir" uma nova Igreja Católica.

INCLUSÃO E PROTESTOS

É significativo que o papa tenha voltado a insistir no caráter inclusivo da fé: pediu que os jovens ajudassem a todos, "qualquer pessoa sem excluir nem marginalizar ninguém", e ressaltou que a Igreja Católica não deve ser "uma capelinha, onde cabe somente um grupinho de pessoas. Jesus nos pede que a sua Igreja viva seja tão grande que possa acolher toda a humanidade, que seja casa para todos".

Ao falar dos protestos e da busca por justiça social, Francisco voltou a citar Madre Teresa de Calcutá. "No coração jovem de vocês, existe o desejo de construir um mundo melhor.

"Acompanhei atentamente as notícias a respeito de muitos jovens que, em tantas partes do mundo, saíram pelas ruas para expressar o desejo de uma civilização mais justa e fraterna. Mas fica a pergunta: Por onde começar? Quais são os critérios para a construção de uma sociedade mais justa? Quando perguntaram a Madre Teresa de Calcutá o que devia mudar na Igreja, ela respondeu: você e eu!"

As declarações podem ser lidas de múltiplas maneiras, claro. Os que louvam a preocupação social de Francisco decerto podem enxergar as frases como apoio do papa às manifestações recentes no país. Por outro lado, ele foi extremamente cuidadoso ao colocar o tema em termos essencialmente espirituais, e não políticos, sem dar nomes aos bois.


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