Folha de S. Paulo


Leitor aponta falhas na manutenção da rede elétrica de São Paulo

Não estou no Haiti

No final do ano passado, um amigo meu de São Paulo foi convidado para uma viagem ao Haiti, para acompanhar um grupo de voluntários americanos que trabalham no restabelecimento das transmissões da Rádio Lumière em Porto Príncipe. Ele estendeu o convite a mim, mas declinei, em função de outros compromissos.

No meio de um dos inúmeros apagões de energia que estamos tendo nos últimos tempos em São Paulo, respondi a uma mensagem de outro amigo dizendo que estava há 15 horas sem energia. Ele respondeu: Você está no Haiti. Deve ser normal.

Pois é, não estou no Haiti, como pensou meu amigo. Mas será que o Haiti é aqui? Quando pensamos no Haiti, somos remitidos a um país pobre, com um dos piores IDHs do mundo, com governos instáveis e que passou por uma catástrofe natural colossal. Nessas circunstâncias, problemas de infraestrutura são explicáveis.

O que ocorre em São Paulo com a AES Eletropaulo é exemplo de como uma concessão para execução de serviços públicos essenciais não deve funcionar. Minha formação de engenheiro eletricista permite compreender melhor o que ocorre no meu entorno. A rede de energia elétrica da Eletropaulo, em geral, é muito antiga e, em diversos locais da capital, obsoleta. A concessionária não realiza as manutenções preventivas básicas e as modernizações necessárias à continuidade dos serviços com qualidade mínima.

ALTA TENSÃO

O circuito primário, de alta tensão, aquele que fica na parte mais alta dos postes, é responsável por conduzir a energia por distâncias maiores, que através dos transformadores –estações no jargão técnico– reduzem a tensão para a energia que temos nas tomadas das residências, escritórios e comércios. Há circuitos primários de distribuição na cidade com mais de 40 anos de idade. Há isoladores obsoletos e com vazamento de corrente, cabos soltos, cruzetas podres (aquela madeira presa aos postes onde se fixam os isoladores). Quando há tempestades, raios podem cair na rede elétrica. Para evitar que nossos eletrodomésticos sejam "torrados", devem existir para-raios na rede. O que ocorre é que os para-raios estragam e nunca são substituídos. No meu entorno há dezenas explodidos.

Há um lance da rede primária próximo da minha residência, relativamente novo, instalado há 15 anos, por insistência minha junto à Eletropaulo. Essa linha, de cerca de 1 km ou menos, é picotada por coqueiros e outras vegetações que queimam os cabos e os rompem. Esse pequeno lance foi rompido em pelo menos dez pontos diferentes, por absoluta falta de manutenção preventiva. Os reparos feitos na condição de emergência se tornam definitivos. Conversas com membros das equipes de emergência –conhecidas como equipes de prontidão– externam que estão desanimados, descontentes e cansados. Inferem que a empresa está sucateando seus ativos. Eles informam, inclusive, que há cabos que esquentam, devido ao incremento da demanda e a falta de adequação da rede à mesma.

Ligar para a central da Eletropaulo é uma via-crúcis. Minha última ligação levou 50 minutos para ser atendida. As informações recebidas dos atendentes são inúteis e o que informam não acontece. Ao enviar um torpedo via SMS para o número 27373, comunicando uma emergência, o consumidor se depara com "respostas padrão" inúteis como "atendimento em 3:12h" ou "atendimento em 2:47h".

Em uma ocasião, liguei varias vezes para informar que havia um cabo de alta tensão energizado caído na rua. Em vão. Ficou lá até que, muitas horas depois, os bombeiros apareceram, e não a concessionária. Em outra ocasião comuniquei que haveria um rompimento iminente no primário, dando nome da rua e número em frente do qual estava para acontecer a desgraça. No dia seguinte o cabo partiu e o bairro ficou às escuras, sem que nenhuma equipe tenha vindo averiguar o fato. Imagine que, para uma concessionária de rodovia, fosse avisado que uma ponte estivesse para cair. Nenhuma equipe é enviada para o local para averiguação e dias depois a ponte cai.

DESLIGAMENTOS

Escutei em uma rádio, uma entrevista com um executivo da Eletropaulo. Este informou o repórter –ou desinformou– que a empresa tem o menor índice de desligamentos do Brasil. Segundo ele, quatro em média por instalação com duração média de 1,8 horas. Isso parece um conto da carochinha. Quem colhe essas informações e de que forma? A própria Eletropaulo? É só analisar as instalações do meu bairro e verificar quantos desligamentos existiram e quantas horas, ou melhor, dias, ficamos desligados.

A empresa explica para os incautos que as chuvas deste ano são excepcionais e que árvores estão caindo sobre as redes, sendo estes os motivos das constantes quedas de energia. Com certeza, é a pior época para uma companhia de distribuição de energia elétrica e as empresas sabem que devem se preparar para tal. Porém, a Eletropaulo não explica que há anos não faz manutenções necessárias ao bom funcionamento da rede, não faz modernizações, não faz ajustes quando a demanda nos bairros aumenta, não faz mais as podas antes do período de chuvas, não redimensiona as equipes de prontidão, não as aparelha melhor e assim por diante. Em uma analogia simples, grande parte das redes da Eletropaulo pode ser comparada a um navio antigo, sem manutenção, obsoleto, com superlotação, e culpa-se uma tormenta no oceano quando o navio afunda.

A empresa alega que o custo para "enterrar" a rede é proibitivo. O custo é alto realmente se a ótica é o todo. Porém há trechos da rede que devem ser subterrâneos por demanda técnica, para que seja alcançada a qualidade mínima do serviço. A Eletropaulo deveria fazer isso sem pressões do Estado ou da sociedade.

A concessionária sempre esteve entre as empresas que mais pagaram dividendos aos seus acionistas. Isso é, em tese, ótimo, desde que não seja à custa dos consumidores, para quem ela deve prestar um serviço de qualidade. Cabe ao poder público e aos órgãos reguladores zelarem pelo interesse da população, exigindo da Eletropaulo um serviço de qualidade e aplicando sanções com severidade, sempre que necessário.

A sociedade deve ser ouvida nessas situações.


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